Você já viu Deus? Qual é o rosto dele? O que Ele pensa? Quais são seus gostos e preferências? As respostas são mais numerosas do que as perguntas. Cada um tem sua opinião, o que é normal: quanto menos conhecemos algo, mais precisamos da imaginação para descrevê-lo. Mas nós, cristãos, não dizemos ter sorte porque Deus se revelou, se fez homem, viveu na Terra, falou, agiu, morreu, ressuscitou e nos deixou a sua palavra? Nós sabemos quem é Deus…
Sabemos mais ou menos. Em nome desse Deus que se revelou em Jesus, os que se dizem cristãos mataram-se uns aos outros, queimaram na fogueira quem não pensava como eles, defenderam que a propriedade privada é sacra e inviolável ou então que os ricos precisam ser eliminados, pois somos todos iguais.
E viva Cristo! Fabricado à imagem e semelhança dos cristãos de plantão! Talvez a chave de leitura disso seja exatamente esta: existem um original e várias cópias. Tenho a impressão de que as partes se inverteram, e as cópias tiveram a pretensão de se fazerem passar pelo original, vendendo o falso (ou muitos falsos) por verdadeiro.
Pensei nisso recentemente ao percorrer as estradas pedregosas da terra por onde Jesus passou, contemplando aquele lago atravessado pelos Apóstolos amedrontados, aquela cidade – Jerusalém – onde se consumou o drama da vida de Jesus. Que Jesus – que Deus – aquele povo da Galileia, da Samaria, da Judeia, encontrou?
Onde e como Ele nasce? Fora da cidade, recebido – por assim dizer – por um grupo de pastores sonolentos, também eles segregados pela sociedade, pelas pessoas de bem. Pouco depois, esse nascimento tinge-se com o sangue de crianças inocentes da mesma idade do Menino, culpadas apenas por serem supostamente candidatas a derrubar do trono um louco criminoso. Mais tarde, esse Jesus desperdiça trinta anos de vida (a juventude com seus sonhos) no mais absoluto anonimato, numa cidadezinha desprezada, tornando suas mãos calejadas na luta com a madeira das oliveiras. Finalmente resolve sair do buraco de Nazaré, tornando-se “mestre”. Mas não como os outros!
E que companheiros Ele escolhe! Gente ignorante, belicosa, ambiciosa… inclusive um tal de Mateus, vigarista profissional. Quando abre a boca, diz: “Bem-aventurados os pobres; ai de vós, ricos!” E, realmente, não dorme nos palácios. Nem sequer tem uma pedra por travesseiro. Deve ter aprendido isso da mãe que, quando estava grávida, entoou um canto no qual sonhou que os pobres ocupavam os tronos, de onde os poderosos tinham sido derrubados, e que os famintos se sentavam à mesa dos ricos, que os olhavam com o estômago vazio.
E que preferências tinha! Publicanos (ladrões institucionais) e prostitutas. Lembram-se daquela mulher que um dia irrompeu, durante o almoço, na casa de um homem de bem, respeitado por sua religiosidade? Jogou-se aos pés de Jesus, e Ele se deixou tocar longamente por esse ser impuro, aceitando as expressões de afeto que escandalizaram os presentes. Não só! Depois ele a indicou como exemplo de amor, rebaixando a respeitabilidade do dono da casa!
Não são casos isolados, mas retratam seu estilo de vida, os critérios que norteiam suas escolhas e que ele propõe aos outros, principalmente aos discípulos. Querem que ele seja rei? Foge para o mais longe possível. Querem ser os primeiros no reino? Imaginem! Sejam últimos e servos de todos. Chama Herodes de “raposa” e diz que os que governam as nações as dominam e oprimem. Ama as crianças que atrapalham os apóstolos e chama-as para perto de si.
Realmente não é o protótipo de alguém equilibrado, de quem se dá bem com todos, que diz sim para tudo, que não quer ofender ninguém (e bastaria tão pouco!). Mas, então, Ele não ama a todos? Claro que ama! Mas não como querem ser amados, pois diz “sim, sim; não, não”, de cabeça erguida, livre, sem pedir licença a ninguém. Quem o compreende compreende. Quem não o compreende não compreende.
Claro que tem preferências… aqueles que não são preferidos pela sociedade: os marginalizados, os excluídos social e religiosamente. Quer levá-los para “dentro” e, por isso, lhes dá espaço. O problema é que os que já estão acomodados não querem dar espaço nem a eles nem a Ele, e o acusam de não respeitar as regras. Acusam-no de subversão; e, no fundo, têm razão: Ele não suporta regras de morte (o sábado, as purificações, os jejuns, os méritos…) nem se deixa condicionar por elas para garantir uma sociedade e uma religião de mortos.
Há uma característica clara na vida e nas palavras de Jesus: o importante não é Ele, mas o outro, e quanto menos importante esse outro for para a sociedade, mais importância terá para Ele. Não é um Deus que pede que seja adorado e louvado, mas que dá dignidade a quem não tem, perdendo a própria. Quem já possui essa dignidade (ou a atribui a si mesmo) já recebeu a sua recompensa. É um Deus que é a raiz da árvore, e não a copa, raiz que leva ao desenvolvimento da copa e à florescência.
É um Deus na contramão. Quantos o encontram? Pedro tenta chamá-lo à razão; seus parentes acham que ele perdeu o juízo; os fariseus e os líderes religiosos odeiam-no porque Ele abala os alicerces de suas construções religiosas privilegiadas; o povo tenta manipulá-lo para matar a fome… No final de sua vida, seus seguidores diminuem, mas Ele não abre mão de suas ideias e opções feitas.
Por quê?
Foi seu grito, no final.
Por quê?
“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”
É uma pergunta que derruba nossas certezas sobre Deus, nossa linguagem feita de afirmações presunçosas: “Deus é assim, é assado, pensa desse jeito. A verdadeira religião, o verdadeiro cristianismo é assim…”
Não. Deus é uma interrogação que coloca em xeque todas as nossas certezas e os nossos comportamentos que delas derivam: “Se você age assim, é um verdadeiro católico”; “Esta é a vontade de Deus para você”; “Esses são do bem e os outros do mal”; “Aqui estão os nossos e lá os deles”.
Por quê?
Porque Deus é amor.
1 Texto publicado na Revista “Cidade Nova”, v.5, n.12, 2011, p. 38-39, dez.