31 março 2020

Padre Costanzo Donegana

Do dia 25/02/2020 até o dia 30/03/2020, publiquei os texto do meu amigo e confessor, Padre Costanzo Donegana, contido no livro UM DEUS NA CONTRAMÃO, da editora Cidade Nova

(https://www.cidadenova.org.br/livraria/produtos/360-um_deus_na_contramao)...

Mas quem foi Padre Costanzo?
Segue um trecho do site MUNDO E MISSÃO do PIME.
Natural da província lombarda de Como, Costanzo foi ordenado missionário do Pime em março de 1964. Diplomou-se em História da Igreja pela Universidade Gregoriana, em Roma. Lecionou em Monza e Milão. Depois, frequentou cursos de etnologia e antropologia no Institute Catholique, de Paris, em vista da destinação à República dos Camarões (1979). Problemas de saúde fizeram-no retornar à Itália, após um breve período na missão camaronesa de Ambam.
Restabelecido, desembarcou no Brasil. Apaixonou-se pela teologia latino-americana nascida em Medellin e, em consequência, da vida sofrida dos migrantes nordestinos em São Paulo. Ao mesmo tempo, ajudava a alavancar a revista Mundo e Missão, na qual, por longos anos escreveu sobre o carisma missionário. Com maestria deixou inúmeros testemunhos sobre a África e a América Latina em Mondo e Missione, da Itália. Próximo do Movimento dos Focolares, Donegana registrou sua esperança na unidade através das páginas de Cidade Nova.
A grande capacidade de comunicação, o constante bom humor, a enorme aptidão em estabelecer relações de amizade com todos, especialmente com os empobrecidos, além do entusiasmo pelas missões, sobressaiam em sua personalidade.
Dentre seus livros destacam-se Eucaristia é Missão; O que tu queres, Pai; o já citado Pime – traços de uma bela história; Um Deus na contramão.
Deste, eu destaco: “Se Deus não estivesse na contramão, não seria mais Deus; seria como os deuses do Olimpo grego e romano, que tinham todos os defeitos e vícios dos homens, … como o deus que abençoa guerras ou deve nos dar a graça que exigimos, ou ainda é obrigado a nos escutar por horas a fio, sem conseguir encontrar uma fresta para dar seu parecer. O Deus de Jesus é livre e pensa com a própria cabeça. Graças a Deus… Cuidado, que podemos encontrá-lo na contramão do nosso caminho”. Escrevia sempre com este estilo elegante, claro e convincente.
Donegana viveu os últimos anos na Itália. Em Roma, levou à frente o Departamento Histórico do Instituto, onde publicou muitos artigos e reeditou a biografia de dom Angelo Ramazzotti, o fundador do Pime (1850).
Em seguida, após breve período de animação missionária em Mascalucia, na Sicília, a saúde abalada levou-o à casa de repouso do Pime, no norte da Itália. Faleceu no hospital de Lecco na noite do dia 8 de julho de 2017.

30 março 2020

Um Deus na contramão (1)

      Você já viu Deus? Qual é o rosto dele? O que Ele pensa? Quais são seus gostos e preferências? As respostas são mais numerosas do que as perguntas. Cada um tem sua opinião, o que é normal: quanto menos conhecemos algo, mais precisamos da imaginação para descrevê-lo. Mas nós, cristãos, não dizemos ter sorte porque Deus se revelou, se fez homem, viveu na Terra, falou, agiu, morreu, ressuscitou e nos deixou a sua palavra? Nós sabemos quem é Deus…
      Sabemos mais ou menos. Em nome desse Deus que se revelou em Jesus, os que se dizem cristãos mataram-se uns aos outros, queimaram na fogueira quem não pensava como eles, defenderam que a propriedade privada é sacra e inviolável ou então que os ricos precisam ser eliminados, pois somos todos iguais.
      E viva Cristo! Fabricado à imagem e semelhança dos cristãos de plantão! Talvez a chave de leitura disso seja exatamente esta: existem um original e várias cópias. Tenho a impressão de que as partes se inverteram, e as cópias tiveram a pretensão de se fazerem passar pelo original, vendendo o falso (ou muitos falsos) por verdadeiro.
      Pensei nisso recentemente ao percorrer as estradas pedregosas da terra por onde Jesus passou, contemplando aquele lago atravessado pelos Apóstolos amedrontados, aquela cidade – Jerusalém – onde se consumou o drama da vida de Jesus. Que Jesus – que Deus – aquele povo da Galileia, da Samaria, da Judeia, encontrou?
      Onde e como Ele nasce? Fora da cidade, recebido – por assim dizer – por um grupo de pastores sonolentos, também eles segregados pela sociedade, pelas pessoas de bem. Pouco depois, esse nascimento tinge-se com o sangue de crianças inocentes da mesma idade do Menino, culpadas apenas por serem supostamente candidatas a derrubar do trono um louco criminoso. Mais tarde, esse Jesus desperdiça trinta anos de vida (a juventude com seus sonhos) no mais absoluto anonimato, numa cidadezinha desprezada, tornando suas mãos calejadas na luta com a madeira das oliveiras. Finalmente resolve sair do buraco de Nazaré, tornando-se “mestre”. Mas não como os outros!
      E que companheiros Ele escolhe! Gente ignorante, belicosa, ambiciosa… inclusive um tal de Mateus, vigarista profissional. Quando abre a boca, diz: “Bem-aventurados os pobres; ai de vós, ricos!” E, realmente, não dorme nos palácios. Nem sequer tem uma pedra por travesseiro. Deve ter aprendido isso da mãe que, quando estava grávida, entoou um canto no qual sonhou que os pobres ocupavam os tronos, de onde os poderosos tinham sido derrubados, e que os famintos se sentavam à mesa dos ricos, que os olhavam com o estômago vazio.
      E que preferências tinha! Publicanos (ladrões institucionais) e prostitutas. Lembram-se daquela mulher que um dia irrompeu, durante o almoço, na casa de um homem de bem, respeitado por sua religiosidade? Jogou-se aos pés de Jesus, e Ele se deixou tocar longamente por esse ser impuro, aceitando as expressões de afeto que escandalizaram os presentes. Não só! Depois ele a indicou como exemplo de amor, rebaixando a respeitabilidade do dono da casa!
      Não são casos isolados, mas retratam seu estilo de vida, os critérios que norteiam suas escolhas e que ele propõe aos outros, principalmente aos discípulos. Querem que ele seja rei? Foge para o mais longe possível. Querem ser os primeiros no reino? Imaginem! Sejam últimos e servos de todos. Chama Herodes de “raposa” e diz que os que governam as nações as dominam e oprimem. Ama as crianças que atrapalham os apóstolos e chama-as para perto de si.
      Realmente não é o protótipo de alguém equilibrado, de quem se dá bem com todos, que diz sim para tudo, que não quer ofender ninguém (e bastaria tão pouco!). Mas, então, Ele não ama a todos? Claro que ama! Mas não como querem ser amados, pois diz “sim, sim; não, não”, de cabeça erguida, livre, sem pedir licença a ninguém. Quem o compreende compreende. Quem não o compreende não compreende.
      Claro que tem preferências… aqueles que não são preferidos pela sociedade: os marginalizados, os excluídos social e religiosamente. Quer levá-los para “dentro” e, por isso, lhes dá espaço. O problema é que os que já estão acomodados não querem dar espaço nem a eles nem a Ele, e o acusam de não respeitar as regras. Acusam-no de subversão; e, no fundo, têm razão: Ele não suporta regras de morte (o sábado, as purificações, os jejuns, os méritos…) nem se deixa condicionar por elas para garantir uma sociedade e uma religião de mortos.
      Há uma característica clara na vida e nas palavras de Jesus: o importante não é Ele, mas o outro, e quanto menos importante esse outro for para a sociedade, mais importância terá para Ele. Não é um Deus que pede que seja adorado e louvado, mas que dá dignidade a quem não tem, perdendo a própria. Quem já possui essa dignidade (ou a atribui a si mesmo) já recebeu a sua recompensa. É um Deus que é a raiz da árvore, e não a copa, raiz que leva ao desenvolvimento da copa e à florescência.
      É um Deus na contramão. Quantos o encontram? Pedro tenta chamá-lo à razão; seus parentes acham que ele perdeu o juízo; os fariseus e os líderes religiosos odeiam-no porque Ele abala os alicerces de suas construções religiosas privilegiadas; o povo tenta manipulá-lo para matar a fome… No final de sua vida, seus seguidores diminuem, mas Ele não abre mão de suas ideias e opções feitas.
      Por quê?
Foi seu grito, no final.
      Por quê?
      “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”
      É uma pergunta que derruba nossas certezas sobre Deus, nossa linguagem feita de afirmações presunçosas: “Deus é assim, é assado, pensa desse jeito. A verdadeira religião, o verdadeiro cristianismo é assim…”
      Não. Deus é uma interrogação que coloca em xeque todas as nossas certezas e os nossos comportamentos que delas derivam: “Se você age assim, é um verdadeiro católico”; “Esta é a vontade de Deus para você”; “Esses são do bem e os outros do mal”; “Aqui estão os nossos e lá os deles”.
      Por quê?
      Porque Deus é amor.
     
       
          1 Texto publicado na Revista “Cidade Nova”, v.5, n.12, 2011, p. 38-39, dez.

29 março 2020

Cores da Imaculada

“Alegra-te, cheia de graça!” é a saudação do anjo a Maria, “traída” pela nossa tradução: “Ave, cheia de graça”. Vocês conseguem imaginar o anjo visitando Maria e cumprimentando-a com um “Oi, bom dia”?
      “Alegra-te” é a expressão que evocava as profecias que prediziam à Filha de Sião (Israel) a vinda do Messias: “Rejubila, filha de Sião […], o Senhor está no teu seio”, canta Sofonias (3,14.17).
      “Cheia de graça” é o nome novo que Deus dá a Maria: é “a cheia de graça”. Não simplesmente cheia, porque é fruto de uma ação totalmente gratuita de Deus, que a escolheu para ser “única” entre os amados por Ele, obra-prima do seu amor. Ele a fez assim, para que fosse mãe do Filho de Deus.
      Esta é a Imaculada, preservada do pecado por ser repleta de graça. A isenção do pecado por si só significaria algo simplesmente negativo que, no máximo, lhe daria um candor, uma nitidez, como aparece em todas suas imagens, inclusive em Lourdes. Se a Imaculada me tivesse pedido uma opinião, eu teria sugerido que ela aparecesse para Bernadete não como a “branca Senhora”, mas com uma veste de várias cores, símbolo da plenitude da graça, das graças. Mas é só minha opinião…
      O que quero dizer com isso é que a isenção do pecado em Maria é o vaso vazio que pôde acolher todos os dons de Deus, até o próprio Deus feito seu Filho. A Imaculada é a criatura em que todos os atributos positivos, que sonhamos para nós e para os que amamos (ser bonito, bom, generoso, amável, verdadeiro, paciente, forte…) se realizaram no mais alto grau. É o jardim onde brotaram todas as flores; melhor, é a flor.
      E é uma figura quente, porque não reteve para si toda a riqueza que recebeu.
      Foi feita cheia de graça para ser mãe, para dar à luz, amamentar, beijar um filho, e isso também não para si, e sim para doá-lo ao mundo. É riquíssima e deu tudo.
      É lógico: se Deus a cumulou de graça, quer dizer que a encheu de si, e Ele é o amor. A Imaculada não é uma imagem bonita a ser contemplada, mas o sinal mais alto daquilo que Deus sabe fazer quando desprende sua fantasia de amor: faz outros iguais a si.

28 março 2020

Família, não convento

Peço desculpas, mas tenho dificuldade em aceitar o adjetivo “sagrada” ou “santa” diante do nome da família de Nazaré. Parece-me que seja suficiente – e plenamente expressivo – dizer “a família”. A família por excelência. Dizer “sagrada” ou “santa” parece-me diminuir aquela unicidade e normalidade que constituem sua identidade fascinante, para aplicar nela uma etiqueta devocional.
      Como era, na realidade, “a família”? Não podemos negar que era original, um caso único: dois esposos virgens e o Filho de Deus. Isso nunca se repetiu na história.
      E misteriosa. Pôr juntos termos como “esposos” e “virgens” é uma combinação que nenhum dicionário de nenhuma língua consegue resolver. É como falar de “uno e trino”, de “homem e Deus”. Óbvio, “a família” coloca-se nesse contexto.
      Portanto, é inútil tentar explicar como Maria e José eram “esposos e virgens”. O Evangelho afirma claramente que Maria era esposa de José, e José era esposo de Maria (cf. Mt 1,18-20). Então, Maria e José eram apaixonados, amavam-se realmente (sendo virgens, porém também esposos: eis o mistério). José não era um “para-vento” para proteger a maternidade virginal de Maria. Repito: era um esposo-virgem. E Jesus cresceu e foi criado pelo amor de dois esposos. Senão, que experiência verdadeira de família teria feito?
      Somente nessa luz a Igreja tem o direito de propor “a família” como modelo das famílias. Como estas poderiam inspirar-se numa família “disfarçada”, apresentada como tal, mas que, na realidade, seria um “convento” simulado? Os três de Nazaré se amavam realmente de todo o coração, de toda a mente, de todas as forças, de maneira sobrenatural e natural.
      Diante desse mistério, não adianta deixar-se levar por jogos de fantasia ou fazer elucubrações teológicas; devemos nos tornar verdadeiros e simples. Mergulhar na riqueza de humanidade e divindade que “a família” contém em si, aprender com ela a colocar acima de tudo o relacionamento (humano-divino), redescobrir cada dia que o sonho nunca atingido completamente − e, portanto, sofrido − da unidade começa, porém, a se realizar quando o amor humano consegue fazer nascer entre homem e mulher a presença do Filho de Deus.

27 março 2020

O corpo de Cristo

Quando, durante a comunhão, uma hóstia cai no chão, apressamo-nos em recolhê-la com devoção e perturbação. É o Corpo de Cristo!
      Quando, durante a missa, entra um pobre sujo e malcheiroso, encolhemo-nos, esperando que não se sente ao nosso lado. É o Corpo de Cristo!
      “Que vantagem pode ter Cristo se a mesa do sacrifício está cheia de vasos de ouro, enquanto ele morre de fome na pessoa do pobre? Antes sacia o faminto e só depois orna o altar com aquilo que sobra” (nós fazemos o contrário: antes ornamos o altar e depois damos ao pobre aquilo que sobra). Quem fala assim é são João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, no século IV. Ele dizia, entre outras coisas, que, para ser entendido por todos, ele se dirigia ao último dos ouvintes.
      Por que Jesus quis permanecer presente entre nós na Eucaristia?
      “Fazei isto em memória de mim”. “Isto” não significa, em primeiro lugar, repetir o rito e, sim, reviver o dom de sua vida para nós. A Eucaristia não é fim em si mesma, mas é em função do amor ao próximo (sobretudo do pobre) e da unidade da Igreja.
A Eucaristia é mistério. Da fé, que nos faz descobrir nela a presença de Cristo. Até esse ponto chegamos. Do amor, que nos leva a amar o próximo, o pobre. E aqui tropeçamos.
      A fé que aguça nosso olhar para ver a presença real do Corpo de Cristo na hóstia deve prolongar-se e descobri-lo realmente presente no corpo do pobre. Se não, a fé é cega e o amor, inconsistente.
      Quando Jesus anunciou que se doava em alimento e bebida, (quase) todos se escandalizaram e (quase) todos o abandonaram. Se muitos cristãos hoje entendessem que se alcança o Cristo eucarístico somente passando pelo corpo do pobre, talvez eles também renunciassem a segui-lo (a comungar), se fossem honestos.
      Na festividade do Corpo e Sangue de Cristo faz-se uma procissão. Pensei numa “variante”. Por que as pessoas que acompanham o Corpo de Cristo, em vez de voltarem, no final, à igreja, não se dispersam à procura do corpo dos pobres?
      Aposto que são João Crisóstomo faria isso.

26 março 2020

Ausência e presença do Espirito

O grito e o gemido:
      grito da terra escrava
      grito de libertação.
      Gemido sem esperança
      gemido da vida nova.
      espírito e Espírito:
      espírito sem carne
      Espírito que dá carne a Deus.
      espírito sem rosto
      Espírito de filhos.
      Identidade:
      Indivíduos ou pessoas.
      Ilhas ou abraços.
      Tu em mim e eu em ti,
      Como no céu assim na terra.
      Você, Espírito criador,
      arranca a Trindade sobre a terra,
      dá a Deus a carne:
minha, da Igreja, da humanidade.

25 março 2020

O "charme" do Espirito Santo

Irmão Christian de Chergé, prior do mosteiro de Tibhirine (Argélia) e um dos sete monges assassinados em 1996, lembrava, um dia, um diálogo que teve com um muçulmano sufi, técnico de calefação: “Eu lhe dizia” − contava − “que estava estudando os textos do Alcorão que falam do Espírito de Deus. Parecia-me que poderiam oferecer a chave do mistério que nos une além das divergências nas quais infalivelmente tropeçamos. Respondeu-me, comentando do seu jeito, um versículo do Alcorão: ‘Não se deve procurar demais o que é o Espírito… Nós lhe tiramos seu charme!’”
      O muçulmano deu uma pincelada que, talvez, não se encontre nas asas da pomba nas pinturas de nossas igrejas.
      Acho que Maria experimentou isso mais que qualquer outra pessoa; seu sim foi a declaração de amor de uma mulher seduzida por este charme (“o Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”; Lc 1,35). Ele era seu esposo e o relacionamento com ela não podia ser somente a realização de um plano, por mais bonito e grande que fosse. Eram Ele e ela, duas pessoas atraídas uma para a outra. Sim, porque se Maria era fascinada por Ele, também o Espírito não podia escapar do “charme” dela, obra-prima da sua fantasia e obra-prima da fidelidade dela. Maria havia saído das suas mãos e tornava-se cada vez mais bela, num amor imprevisível também para Ele.
      O encontro destes dois seres fascinados um pelo outro e para o outro não se limitou ao plano dos sentimentos nem da vontade: tornou-se carne, Jesus, o homem mais “charmoso”: “Tu és o mais belo dentre os filhos dos homens” (Ps 45,3). Também por Ele Maria foi totalmente cativada, sempre com Ele, levada pelo Espírito até “estar” no Calvário, seduzida por um amor sem limites.
      Também aqui, o “charme”.

24 março 2020

Espirito Santo

O Espírito revira Babel. A humanidade, que havia caminhado na direção centrífuga da dispersão, afastando-se do ponto de unidade, volta sobre seus passos como que sugada por uma força centrípeta. Circula entre todos um meio de comunicação comum, entendem-se entre si, embora vindos dos pontos mais distantes do mundo então conhecido.
      O milagre do Espírito Santo é que realiza a unidade, respeitando a diversidade. Para nós, ou existe a uniformidade ou a divisão, ou a ditadura ou a anarquia, ou pensamento único ou o relativismo. “Todos devem pensar como eu – cada um pense como quiser”.
      Isso acontece também nos relacionamentos do dia a dia: todos temos um pouco do adulto autoritário e do adolescente rebelde. Esticados nesta contradição, sofremos sonhando a harmonia.
      A unidade é unicamente dom do Espírito Santo, que faz de muitos um só, o Cristo. Não uma sociedade, uma comunidade, uma organização perfeita, mas um corpo. Em Cristo, você sou eu e eu sou você. Um e muitos, o um não de uma cor só, mas na variedade e harmonia de diferentes cores. O outro, o diferente, não é perigo, antagonista do qual tenho de me defender, mas a parte de mim que me falta para ser (completo), o que me realiza. “Você é minha beleza, minha bondade, minha verdade”. Em todos os relacionamentos: entre pais e filhos, esposo e esposa, irmãos, entre amigos, direita e esquerda, brasileiros e estrangeiros, católicos e protestantes, cristãos e judeus, budistas, muçulmanos, crentes e ateus…
      O perigo consiste na pretensão de engaiolar o Espírito Santo a nosso bel-prazer. Mas Ele não se deixa segurar; será nosso somente se nos deixarmos agarrar por Ele, se nos deixarmos levar pelo seu vento e queimar pelo seu fogo.

23 março 2020

O olhar

“Por que estais olhando para o céu?” (At 1,11).
      Olharam o céu, viram aonde Jesus fora, mas não podiam continuar com o nariz voltado para cima.
      “Recebereis força para serem as minhas testemunhas em Jerusalém […] e até os extremos da terra”.
      Devem caminhar olhando onde põem os pés.
      Olhar o céu encheu seus olhos de luz; enxergaram a meta e o caminho (“Eu sou o caminho”). Ninguém mais tira isso de seus olhos. Naquele olhar está concentrado tudo aquilo que vivenciaram com Jesus, seus gestos, suas palavras. Quando Jesus estava com eles, não tinham entendido profundamente quem Ele era, tinham duvidado, interpretado o projeto dele em sentido banal.
      Agora não, sabem de onde veio e para onde está voltando, sabem o porquê de Ele ter descido entre os homens. Sua morte e ressurreição são a faixa de luz que revela quem é Deus e quem somos nós. No fundo de tudo, o Amor.
      Com isso nos olhos, retomam o caminho, como videntes. Seus olhos iluminados penetram a realidade, alcançam sua raiz. Sabem distinguir o verdadeiro do falso, o amor do egoísmo, o serviço do poder. Aquilo que está de acordo com esse olhar é verdadeiro, bom, bonito. O resto é falso, mau, feio.
      Mas não é um olhar frio, cortante. É quente, manso, misericordioso. Querem comunicá-lo a todos (“até os extremos da terra”), para que a vida dos homens e das mulheres seja realizada, não fracassada, para que tenham a alegria.
      Parecem pessoas com uma fixação. Sim, “fixadas” em Jesus, sem saber desviar os olhos Dele. E com esses olhos, “feitos” por Ele, olhos Dele, caminham nas estradas do mundo.

22 março 2020

Tú me amas?

Quando Jesus, na praia do lago, depois da ressurreição, dirigiu por três vezes a pergunta a Pedro: “Simão de João, tu me amas?” (Jo 21,15.16.17), dizem que Ele perguntou assim para lhe fazer reparar a tríplice renegação da noite da captura. Mas isso só é uma parte da verdade.
      Seria errado atribuir à pergunta o sentido de uma repreensão, quase de uma humilhação: “Você me renegou; vamos ver agora se está arrependido e quer se emendar”. Jesus não humilha ninguém; quer somente inspirar de novo confiança.
      Podemos imaginar que Pedro, ele sim, se sentia humilhado, tinha os olhos baixos para a praia pedregosa, sentia-se indigno da confiança do Mestre, que o havia escolhido para ser o primeiro dos Doze.
      A pergunta de Jesus quer dizer que Ele é ainda capaz de amar, apesar de tudo. Ele o convida a amá-lo e com isso lhe revela que o amor ainda tem espaço na sua vida: “Você pode me amar, Simão de João; nada mudou, eu sou ainda o objeto do seu amor”. Jesus reconstrói Pedro interiormente, com um perdão diferente do nosso, que guarda lembranças e é estriado de desconfiança. Ele faz isso doando-se de novo totalmente a ele, num relacionamento transparente, sem diafragmas nem condições.
      “Senhor, tu sabes tudo, tu sabes que eu te amo” (Jo 21,17). Pedro se abre, deixa-se penetrar pelo olhar de Jesus: entendeu que não é julgado, que Jesus vai buscar o amor escondido entre as dobras do temor envergonhado.
      Pode recomeçar.

21 março 2020

As chagas do ressuscitado

      Quando Jesus aparece pela primeira vez aos discípulos, na noite da Páscoa, Tomé não está presente. Ele reage: “Se não vir e colocar meu dedo na marca dos pregos e no lado dele, não acreditarei” (Jo 20,25).
      Jesus aceita o desafio. Aparece com as chagas: reais. Todas.
      Nós, no lugar Dele, teríamos feito uma cirurgia plástica; as chagas eram repugnantes, lembravam um momento doloroso, um fracasso.
      Jesus, não. Por quê?
      Jesus vive a vida toda, não só alguns momentos selecionados, “positivos”. Vive também os momentos “negativos”.
      Qual a diferença, para Ele, entre positivo e negativo?
      “Ninguém tira a minha vida; eu a dou livremente” (Jo 10,18).
      Para Jesus, é positivo aquilo que é vivido por amor e no amor; negativo, aquilo que está fora do amor.
      Por isso, Ele fica com as chagas também após a ressurreição. As chagas não são morte, e sim vida, são positivas. O Jesus das chagas está vivo tanto quanto o Jesus da ressurreição. Elas não são um episódio superado e cancelado pela ressurreição, mas possuem em si a marca da eternidade, a marca do amor. Não passarão jamais.
      São a marca registrada de um Deus que quis (e quer) ser homem em tudo, não pairando acima da humanidade sofrida, mas identificando-se com ela. Para nos salvar, isto é, nos dar a possibilidade de estarmos vivos quando todos (e nós mesmos) cantam em coro que estamos mortos, que “isso não é vida”.
      Nós somos tentados a apagar as chagas, a fugir delas, em nós mesmos e ao nosso redor. Há pessoas que nunca entram num hospital, que nunca vão a um velório, que fogem de um mendigo, que não param ao lado de um sofredor… Nem querem olhar.
      Jesus sem chagas não existe, Deus sem chagas não existe.
      “Por que vocês estão procurando entre os mortos aquele que está vivo?” (Lc 24,5).
      Paradoxo cristão! O Cristo sem chagas está entre os mortos, entre aqueles que fogem da vida, aqueles sem coragem, aqueles que não sabem amar.
      “Estende aqui teu dedo… Estende tua mão e toca meu lado” (Jo 20,27).
      “Meu Senhor e meu Deus!” (20,28).
      Se você quer encontrar Deus, coloque o dedo e a mão nas chagas da humanidade.

20 março 2020

Deus é exagerado

Deixa que eu te diga: “Tu és exagerado! Imprevisível! Nunca se viu algo assim!”
      Vamos ver? O homem, criado por ti por amor, virou-te as costas. E Tu? Correste atrás do homem, repetindo continuamente que o amas.
      Tu não exiges que o homem tente subir até teus pés para se humilhar no próprio pecado; desces das tuas celestes moradas e te fazes um de nós, pobre, trabalhador, anônimo.
      Tens três anos de notoriedade, mas não no palácio do rei ou no templo, porém entre os marginalizados, os desonestos, as prostitutas. Em alguns momentos, querem fazer-te rei por aclamação; Tu foges.
      E como acabas? Aqui está o cúmulo do exagero – ou do absurdo? Condenado como um criminoso, fracassado, injuriado. A morte mais humilhante e dolorosa.
      As dores, exatamente. Uma decapitação não dói muito e é rápida. Não, Tu quiseste provar todas as dores físicas e morais. Não havia um ponto de teu corpo e de tua alma que não estivesse ferido. Sozinho e abandonado por aqueles que havias beneficiado, pelos amigos.
      E pelo Pai. Também o Pai virou-te as costas? “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46). É a pergunta mais terrível jamais lançada. O exagero das trevas.
      Mas eram necessários esses exageros para abraçares todo o negativo − exagerado − da humanidade e redimi-la. Quanto mais o homem exagera no mal, tanto mais Tu exageras no amor, porque não aceitas ser vencido.
      Porque é questão de amor: exagerado e imprevisível…

19 março 2020

Aqueles pregos

Tu, o homem livre,    
pregado numa madeira,
sem escape.
“Libertou os outros”: os leprosos da exclusão,
os endemoninhados das correntes,
a adúltera das pedras,
Maria do pecado,
Lázaro da morte…
“Liberte a si mesmo,
Desça agora da cruz!”
A última tentação:
“é o milagre maior
por isso o Pai te enviou,
é a salvação dos homens.
Todos a teus pés,
Filho de Deus,
para te adorar.
Desce!”
Embaixo, João levanta o olhar,
espera?
Tua mãe os olhos no chão,
“Seja feita”.
Aqueles pregos
não mais de ferro, mas de amor.
Você fica.

18 março 2020

A loucura

“Que todos sejam um, como Tu, Pai, estás em mim e eu em ti” (Jo 17,21).
      Não podemos ir contra as evidências. A partir do momento em que Jesus rezou essas palavras − dois mil anos atrás −, onde se viu sua realização? Ou Jesus estava iludido ou vivia fora do mundo. Ou…
      Exatamente, pode haver uma terceira alternativa. Era louco. O louco muitas vezes vê e vive num mundo que os “normais” não sabem imaginar, porque são “normais” e acabam se queixando justamente dessa normalidade. Pois, se forem sinceros, a normalidade é pequena, mesquinha, monótona. Mas ficam aprisionados nela.
      Eles têm medo dos loucos, não por serem perigosos – poucos o são −, mas por serem livres, abrirem horizontes diferentes, sonharem. Eu me lembro de um louco que passava no meio das pessoas no enorme espaço de espera da rodoviária de São Paulo, cantando cantos natalinos − fora do tempo. A cara das pessoas traía o embaraço delas quando ele chegava perto. Quem era livre e feliz lá?
Quando Jesus reza pela unidade, canta o canto do amor no meio dos homens. Muitos têm medo, porque isso os incomoda, os tira do seu mundo costumeiro, diz uma palavra nova. Há, porém, quem o escuta e acredita. Tudo se resume nisso: ter a coragem de seguir um louco, deixar-se contagiar e contagiar outros.
      Vamos nos unir à sua melodia e formar um coro.

17 março 2020

Intimidade

“Não os chamo mais servos […] mas amigos” (Jo 15,15).
      Na véspera da sua paixão, Jesus quer passar um momento de intimidade única com seus companheiros. Quer “estar” com eles, fitá-los nos olhos, abrir-lhes seu coração. Ele lhes havia revelado coisas que não dizia ao povo, mas aqui diz: “tudo o que ouvi do meu Pai eu vos dei a conhecer” (Ibidem).
      Mas é uma intimidade que vai além Dele e dos Apóstolos: Ele os introduz no Pai. Veio para isso, para realizar o homem além da sua dimensão, para fazê-lo desembocar no mar de Deus.
      Por isso reza, segura os discípulos nas mãos (“eu os guardava no teu nome”, Jo 17,12) e os mergulha na Trindade. Não pode ser fruto de uma ação, mas é somente dom gerado pela oração: acontece entre o Filho e o Pai e trasborda nos discípulos. A intimidade é aquilo que acontece em Deus e se escancara e abraça o homem: “Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti” (Jo 17,21).
Os discípulos devem unicamente acolher a dádiva: “Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Jo 13,34). Não fazer, e sim deixar que Ele faça neles, que continue neles e entre eles.
      Mas existe o cume da intimidade: “Tomai e comei… tomai e bebei”. É a identificação, a transformação Nele: “Quem come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim e eu nele” (Jo 6,56). É o amor que se faz nada, para que o outro exista. Jesus realiza isso para que façamos o mesmo. A Eucaristia é uma multiplicação de amor, para invadir a terra.

16 março 2020

Um só pai, todos irmãos

São os últimos dias da vida de Jesus que marcam a ruptura definitiva com seus inimigos. Ele os ataca de maneira decidida e violenta: são incoerentes e contraditórios; o comportamento deles não corresponde aos ensinamentos que pregam; procuram a si mesmos, ostentam uma religião formal e aproveitam-se da posição em que estão para escalar os primeiros lugares na sociedade.
      As palavras de Jesus têm valor para todos os tempos, inclusive para a Igreja hoje. Bento XVI fustigou várias vezes atitudes semelhantes: “Não é porventura uma tentação, a da carreira, do poder, uma tentação da qual não estão imunes nem sequer aqueles que desempenham um papel de animação e de governo na Igreja?”
      Jesus derruba o castelo dos fariseus e dos falsos sacerdotes de seu tempo e de hoje com a imagem verdadeira de Deus, que Ele veio revelar: Pai. Que é o único Senhor (e, com Ele, o Cristo). Na comunidade, todos são filhos do Pai e irmãos entre si. A função da autoridade é a transparência: colocar sob os holofotes e tornar tangível a paternidade de Deus nos relacionamentos fraternos. Por isso, a autoridade é serviço, e isso é a verdadeira e única grandeza.
Jesus vai à raiz do problema – como sempre – e oferece o critério fundamental para construir relacionamentos verdadeiros. Seu olhar inverte as maneiras de pensar e de agir da sociedade, que é organizada normalmente por degraus, onde quem está no topo nem sempre merece ocupar aquele lugar.
      Aquilo que Jesus propõe é revolucionário, ao mesmo tempo doce e polêmico. O que há de mais humano e terno do que a imagem de Deus como Pai? Mas o que é mais intolerante com as desigualdades e os carreirismos arrogantes do que a imagem de Deus como Pai? Ele é ciumento da dignidade de seus filhos e não tolera privilégios na sua família.
      As palavras de Jesus valem para as autoridades, dentro e fora da Igreja, mas também para todos. Não podemos nos limitar a acusar os outros, achando que somos puros e perfeitos. A raiz é sempre a paternidade de Deus, que todos devemos espelhar em nossa vida. Todos – pai, mãe, irmão e irmã, sacerdote e freira, dirigente e funcionário, político e comerciante… – somos desafiados por Jesus a construir a família do Pai. Todo o resto não tem valor ou, pior, falsifica e destrói os relacionamentos. E o caminho é único: servir, como Ele: “O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45).

15 março 2020

Os pagãos de Jesus

Jesus tem preferências esquisitas. Além dos pobres, dos publicanos e das prostitutas, Ele tem um fraco pelos pagãos. Não costuma exagerar nos elogios, mas, com os pagãos, ele não os economiza.
      “Em Israel não achei ninguém que tivesse tanta fé” (Mt 8,10), afirma em relação ao centurião romano que lhe suplicava a cura de seu servo.
      “Mulher, grande é tua fé!” (Mt 15,28), responde para a cananeia que, com “esperta” humildade, se identifica com um cachorrinho para lhe arrancar a cura da filha.
      Jesus simboliza num samaritano (não pagão, porém cismático e inimigo dos judeus) o exemplo típico do amor ao próximo, em oposição à atitude indiferente dos representantes da religião oficial (cf. Lc 10,29-37). Pessoalmente, não encontra nenhuma dificuldade em conversar publicamente, à beira de um poço, com uma mulher samaritana, suscitando a surpresa dos próprios Apóstolos (cf. Jo 4,27).
O Evangelho põe na boca de um centurião pagão a primeira profissão de fé diante da morte de Jesus: “Verdadeiramente este homem era filho de Deus!” (Mc 15,39).
      Poderíamos continuar lembrando casos desse tipo.
      Fazem pensar, sobretudo se colocados em comparação com as acusações, os “ais” e as polêmicas de Jesus com os sacerdotes, os doutores da Lei, os escribas e os fariseus, representantes oficiais da religião.
      Pode-se dar mais de uma explicação. Eu gosto de pensar que Jesus veio superar toda religião com suas tradições, para colocar no centro da vida a fé e o amor, ou seja, o relacionamento: com Deus e com o homem.
      Mas, e a Igreja? Não serve mais? Ela é indispensável. Está a serviço do relacionamento: “Onde dois ou três estiverem unidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20).

14 março 2020

O templo

Jesus não construiu igrejas, mas não porque não era pedreiro. Frequentou o templo, mas preferiu as estradas, os montes, os campos, o lago.
      Disse isso claramente à samaritana: “Vem a hora em que nem sobre esta montanha nem em Jerusalém adorarão o Pai […] Mas vem a hora − e é agora − em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” (Jo 4, 21.23).
      Um dia, tomado por zelo violento, entra no Templo de Jerusalém e varre aqueles que o profanam. Quer então dizer que aquele Templo é importante para Ele? Não, o comentário que Ele faz orienta claramente para outra perspectiva.
      Com um salto de lógica típico de sua maneira de pensar, Jesus passa do templo de pedra a seu corpo, o templo verdadeiro e definitivo, que será consagrado com sua morte e ressurreição: “Destruam este templo, e em três dias o levantarei” (Jo 2,19).
      O “mal de pedra e de tijolo” é uma das paixões dos sacerdotes, geralmente seguidos devotamente por suas comunidades. Não é mau construir igrejas e capelas. Que não se tornem, porém, o substituto do verdadeiro templo, o corpo de Cristo, que quer morrer e ressuscitar continuamente em todos os cantos da terra, também − sobretudo − nos mais “profanos”, exatamente por serem os que Ele preferiu quando viveu entre nós.
      O verdadeiro culto nesse templo não é feito, em primeiro lugar, de cerimônias com cantos e incenso, mas por pessoas e comunidades que revivem a Páscoa de Jesus, no amor com que morrem uma pela outra, que as faz seres ressuscitadas, vivas. E assim dão a Jesus a possibilidade de voltar entre nós e de ir aonde ninguém vai.

13 março 2020

Viver em perigo

“Ai de vós, ricos!” (Lc 6, 24). “É mais fácil um camelo passar pelo fundo da agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (Mc 10,25).
      Jesus é duro com os ricos? Com a riqueza, sim; pelos ricos, ele tem extrema compaixão. “Extrema”, porque vivem à beira do abismo e correm continuamente o risco de cair dentro dele. Vivem num equívoco, apoiando a vida em algo que não tem consistência e que contém o veneno da morte: “Na prosperidade, o homem não entende, é parecido ao gado gordo que se abate”, diz o Salmo 48, com a linguagem carnuda do Antigo Testamento. Jesus grita contra os ricos para acordá-los da hipnose em que estão mergulhados, para tentar - eis a compaixão extrema – afastá-los do abismo.
      Mas também porque a riqueza os torna cegos e não permite que vejam Lázaro à porta. Não que talvez lhe façam algum mal; simplesmente não o percebem, ignoram-no. Não entra na vida deles de ricos. E com isso não percebem que Lázaro vale mais do que os bens, exatamente porque ele não os tem. Ele é uma pessoa, não um manequim oco como eles.
A mentira da riqueza é um perigo para todos, porque possui uma força sedutora: também o pobre pode ser rico, pelo menos em desejo. Trata-se de um vírus contagioso que se alastra e devora as pessoas por dentro, esvaziando-as da própria humanidade. Por isso Jesus proclamou: “Bem-aventurados os pobres em espírito – até nas fibras mais profundas – porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3), aquele reino no qual os ricos não entram. Os pobres são bem-aventurados, isto é, realizados, inteiros, verdadeiros, felizes, sem precisar de outra coisa a não ser a própria humanidade e Deus, sua única confiança.
      Jesus disse isso e, sobretudo, viveu isso, radicalmente. Quem sabe por que os cristãos e a Igreja muitas vezes pensam e vivem de maneira diferente?!

12 março 2020

O santo publicano

Dois homens: o justo e o pecador. Assim são realmente. Um é perfeito na observância da lei de Deus (o fariseu), o outro é desonesto (o publicano). A sociedade os considera assim, e tem razão.
      Deus não. Eles se apresentam diante Dele. O justo aparentemente se dirige a Deus, mas na realidade olha para si mesmo, para sua retidão, sua fidelidade à lei. Deus não existe para ele, que é o centro do mundo. No máximo, aceita falar com Deus considerando-o seu benfeitor, isto é, que derrama sobre ele seus dons.
      O outro não tem nada para dar, menos que nada: seus pecados. E doa-os a Deus. Sem saber que está entrando no coração Dele. Os méritos do fariseu são um obstáculo entre ele e Deus. A ausência de méritos do publicano permite-lhe estabelecer contato com Deus. Ele não se atreve a levantar os olhos, mas Deus põe sobre ele seu olhar, por encontrar nele um pobre que confia, que não exige nada, que se entrega.
      Jesus afunda a faca no coração das pessoas e nas estruturas da sociedade, subverte as certezas das convenções, as verdades dos comportamentos.
Quem sabe se Ele concorda sempre com as lápides dos benfeitores da Igreja ou com as estátuas dos “grandes” da sociedade civil e eclesiástica! E com tantos nomes dados às ruas e às praças!
      Não podemos dizer que Jesus canonizou o publicano, porque não é um fato real; é uma parábola. Mas o “bom” ladrão existiu realmente. E Jesus o canonizou.

11 março 2020

Um Deus injusto?

É muito esquisita a seguinte parábola (cf. Mt 20,1-16): um patrão não paga justamente os trabalhadores; ele trata da mesma maneira quem trabalhou um dia inteiro e quem se limitou a apenas uma hora de lida. Isso é claramente contra o direito trabalhista. Os sindicatos convocariam uma greve geral.
      Seria um erro de Jesus, sempre atento a defender os direitos do homem?
      Olhemos como Jesus age. Ele acolhe os pecadores, os publicanos, as mulheres de rua. Não faz diferença entre justos e pecadores; pelo contrário: parece preferir estes últimos. Porque Ele é misericórdia e dá a todos a possibilidade de se salvarem, também a quem parece não merecer.
      A parábola é dirigida aos justos, aos fariseus, que colocavam a relação com Deus no plano do dar e receber, da retribuição correspondente ao trabalho efetuado. Deus, não. Ele se põe no nível da gratuidade, do dom, não do mérito.
      Paga em primeiro lugar os últimos. Os primeiros esperam mais, mas recebem o mesmo. Daí a reação: não se queixam por sofrerem prejuízo (receberam o combinado), mas pela equiparação da remuneração dos outros à própria.
Defendem a diferença e não aceitam que o patrão, que foi justo com eles, seja bom com os demais.
      A parábola não concerne o agir de Deus, mas o dos justos: como se comportam frente à misericórdia de Deus? Eles sentem inveja dos outros, em vez de se alegrarem vendo que o Pai perdoa e acolhe os filhos que estavam afastados.
      É evidente o paralelo com a parábola do filho pródigo, com a reação do filho mais velho, que condena a maneira de agir do pai em relação ao filho que volta.
      Jesus é o revelador da misericórdia de Deus com sua atitude – prefere os últimos (em sentido social e moral) – e com seu ensinamento. E é revolucionário.
      Qual é nosso Deus? Não percebemos que às vezes (frequentemente?) falamos e nos dirigimos a um Deus que não existe? Um Deus que não se ocupa das pessoas que julgamos socialmente e moralmente. Que abençoa nossos critérios de classificação das pessoas e, por conseguinte, de relacionamento (ou não relacionamento). Que garante a cultura com base na qual nossa sociedade é construída, do conformismo, do culto das aparências, do carreirismo, das ilusões, do vazio… E da exclusão de quem não aceita as regras do jogo.
      Nunca lemos o Evangelho?

10 março 2020

Dois irmãos

Uma parábola simples em dois quadros: um “não” que se torna um “sim”; um “sim” que se torna um “não” (cf. Mt 21,28-32).
      Não é o falar que vale, e sim o fazer: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21).
      Mas não basta. A frase central de Jesus é: “Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21,31). É sua linguagem, forte, sem meios-termos.
      Jesus não quer dizer que todos os pecadores entrarão no Reino de Deus e que nenhum fariseu, nenhum justo, conseguirá entrar. Suas palavras constatam uma situação de fato que, porém, continua a repetir-se, com o Batista, com Ele e assim por diante. No Evangelho, de um lado encontramos Mateus, Zaqueu, a Madalena, o bom ladrão; do outro, os fariseus, os sacerdotes, o jovem rico.
      O Reino de Deus é a nova realidade que Jesus nos veio trazer: sua maneira de pensar e de viver, a maneira de pensar e de viver de Deus, que também podemos chamar de “paraíso na terra”. Não no sentido de que tudo vai bem, que não há problemas e dores, mas que tudo é vivido – em nós e entre nós – na luz de Deus e com o olho e o coração de Deus.
      Jesus constata que os pecadores o entendem, se convertem e vivem como Ele. Os justos não: são “crentes incrédulos”, seguros de si mesmos e do próprio bom comportamento, fechados em relação a Jesus. Dizem “sim” a si mesmos e “não” a Ele, não escutam, são impermeáveis às suas palavras, a ponto de o “sim” deles (de justos) tornar-se um “não” à realidade do Reino; no final, não entram. Ser justo é uma riqueza e pode ser perigosa: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo da agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (Mc 10,25).

09 março 2020

Arriscar a vida

Quando Pedro declarou a Jesus que Ele era o Messias, não podia imaginar sua explicação: “Você tem razão! Saiba, porém, que eu vou acabar na cruz”. Pedro ficou desnorteado.
      A alguns gregos que queriam vê-lo, Jesus deu a mesma resposta: seria “elevado” na cruz. Não conhecemos a reação dos gregos. A nossa, sim. Como a de Pedro?
      Para Jesus, é a hora da glória, da plena revelação, da salvação. Que se realiza na unidade. Ele usa a imagem do grão de trigo, que morre para dar “muitos frutos”. Se não morrer, “permanecerá só”. Deve estourar para multiplicar-se; do contrário, ficará solitário.
      Jesus não está inventando nada. Narra como vive desde sempre com o Pai e o Espírito Santo. Os Três são a comunidade-modelo exatamente porque “morrem” um no outro, por amor. Essa é a “glória” Deles; realizam aquilo que ninguém consegue, a quadratura do círculo: são três e são um. Jogam a vida e reencontram-na toda, plena.
Ele propõe isso também a nós: “Quem tem apego à sua vida, vai perdê-la; quem despreza a sua vida neste mundo, vai conservá-la para a vida eterna” (Jo 12,25). Parece absurdo. Façamos a prova: a vida é como uma flor que Deus colocou em nossas mãos. Se quisermos guardá-la só para nós, fecharemos a mão e acabaremos com um punhado de pétalas murchas. Se arriscarmos e mantivermos a mão aberta, todos podem admirar a flor, que permanece intacta para nós.

“Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).

08 março 2020

O amor no amor

Imagino que, quando Adão e Eva pecaram, Deus foi pego no contrapé: “Mas como? Eu concentrei neles toda minha fantasia criadora, depositei neles minha completa confiança! Como é possível?!”
      Seu amor foi posto à prova: até onde?
      Foi então que Ele descobriu em si uma qualidade que – creio − não sabia possuir. Sem dúvida, Ele sabia ser amor; seu amor, no entanto, não tinha deparado com o mal. Na verdade, fora desafiado pelos anjos rebeldes, que haviam tentado destroná-lo. Ele os havia excluído de si. Mas o homem havia-lhe causado pena; fora enganado pela astúcia da serpente e caiu na primeira ocasião.
      Então Deus olhou profundamente para dentro de si mesmo, nas dobras mais escondidas do seu ser – amor – e disse à serpente: “Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela: ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,15). Uma luz dilacerou o fundo da escuridão do fracasso humano e devolveu a Deus a esperança: era a misericórdia.
      Ele podia afirmar de novo o domínio sobre o mal e recuperar seu projeto.
Deus se alegra todas as vezes que exerce a misericórdia – “há alegria diante dos anjos de Deus por um só pecador que se arrependa” (Lc 15,10) –, sente que seu amor alcança o ápice. Porque naquele momento é plenamente Deus-Amor.
      É o totalmente novo como alternativa ao velho – monótono, sem esperança – do mal. A nova Criação, do nada – sujo e doente –, do mal.
      Diz uma magnífica oração da liturgia: “Ó Deus, que revelais a Vossa onipotência sobretudo com a misericórdia e com o perdão”.

07 março 2020

A luz e a luz

Os Apóstolos assustaram-se: o Mestre seria eliminado por seus inimigos. As esperanças desvaneciam: não mais cargos, poder, riqueza… Valia a pena continuar com Ele?
      Jesus não recua, ruma a Jerusalém e ninguém consegue convencê-lo a mudar: “Se alguém quiser vir após mim […], tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34).
      Porém, não quer deixar a impressão de que a cruz seja a última palavra, que a terra seja somente um vale de lágrimas, que seu projeto seja um destilado de masoquismo.
      Então, sai do vale (de lágrimas) e sobe um monte, onde resplandece o Sol: Ele. Não é iluminado de fora; é Ele a fonte da luz. Dirá: “Eu sou a luz do mundo” (Jo, 8,12). Leva consigo três testemunhas – Pedro, Tiago e João –, que agora querem ficar com Ele, estavelmente: é bom demais!
      Não entendem que aquela luz não é para ser orientada para eles mesmos, e sim para iluminar os outros: senão se apaga.
Devem descobri-la dentro de si, extraí-la do mais profundo do próprio ser, onde Ele a escondeu. Escutando-o, tornam-se como Ele, o Filho amado, realizam a própria identidade verdadeira. Não podem ficar permanentemente na montanha; precisam voltar à estrada rumo a Jerusalém, mas serão outros. Sabendo que, assim como o candelabro deve ser colocado no alto para iluminar, também a Luz deve ser elevada sobre a cruz para romper as trevas.
      Então, o que Jesus diz é lógico e não incute medo. Ao contrário: “Vós (também) sois a luz do mundo” (Mt 5,14).

06 março 2020

As cinzas

“Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó hás de voltar”. Essa afirmação escultural marca o início da Quaresma, embora atualmente possa ser substituída por outra: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. As palavras são acompanhadas pelo gesto, muito sério, do sacerdote, que coloca a cinza na cabeça dos fiéis.
      Parece que voltamos mil anos, que estamos enfileirados nas colunas dos penitentes medievais, oprimidos sob o peso das culpas e do pavor do castigo de Deus. A morte, com seu esqueleto branco envolvido no manto preto e a foice erguida para ceifar, marca o ponto final e decisivo que dividirá a humanidade em dois grupos impelidos por caminhos inconciliáveis.
      Mas é realmente assim? As cinzas são somente símbolo de fim irreversível, de destruição, de extinção dos sonhos e das esperanças?
      Depende de como olhamos o símbolo. Pode ser sinal de destruição, até violenta: “Os inimigos reduziram a cidade a cinzas”. Ou do triste e desconsolado fim da existência.
Mas pode ser expressão da verdade das coisas, da sua relatividade. Não seria mau colocar uma porção de cinzas nos bancos, nos parlamentos, nos estúdios de cinema e de televisão, nos estádios…, nas sedes episcopais, nos conventos, nos seminários… As cinzas dizem que os ídolos têm duração breve e enganam. Também os pequenos ídolos de cada um de nós, os projetos, as carreiras, as promoções. Até as coisas mais bonitas e santas que, porém, não são Deus: os filhos, o casamento, o sacerdócio, os hábitos religiosos, a liturgia, a arte, a ciência…
      Só Deus não acaba em cinzas!
     
      Como se faz para produzir cinzas? Queimando algo. A cinza pode ser fruto de destruição, mas também de amor. O fogo diz amor, amor que se consome e que, assim, se torna cinza.
      Se em nós a chama do amor está acesa, ela queima e consome. Queima não só o negativo, o egoísmo, mas também o ser, aquilo pelo qual nós somos. O amor nos reduz a nada (portanto, menos do que cinzas). Se tentarmos salvar algo de nós mesmos, o nosso amor será um amor sob condições, calculado, será não amor.
      Mas a chama de amor produz um milagre: debaixo das cinzas permanece a brasa, fonte de vida, de ressurreição.

05 março 2020

A tentação

“O Espírito impeliu Jesus para o deserto e ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás” (Mc 1,12).
      Jesus acaba de receber o batismo, início da sua missão, e antes de começar a percorrer as estradas da Palestina, o Espírito lhe faz experimentar um ensaio daquilo que será sua história. No deserto, sozinho, embate com Satanás, sozinho. São e serão os protagonistas do drama; os outros girarão ao redor deles, alinhando-se ou com um ou com outro: Deus ou Satanás, o Bem ou o Mal.
      Duas lógicas inconciliáveis, que significam duas maneiras de pensar o mundo, a história e o homem, que não pairam no alto, entre as nuvens, mas que penetram nas entranhas da matéria, nas fibras dos corpos, nas dobras do espírito, nas relações entre homem e mulher, na sociedade e entre as sociedades.
      Jesus embaterá com a lógica de Satanás sob mil rostos: os fariseus, os escribas, os saduceus, isto é, o poder religioso, dono do povo; Herodes e Pilatos, os zelotes, isto é, o poder político que, usa a violência e a esperteza; o povo, que quer transformá-lo num libertador dos invasores. Mas também entre os “seus” “O Espírito impeliu Jesus para o deserto e ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás” (Mc 1,12).
      Jesus acaba de receber o batismo, início da sua missão, e antes de começar a percorrer as estradas da Palestina, o Espírito lhe faz experimentar um ensaio daquilo que será sua história. No deserto, sozinho, embate com Satanás, sozinho. São e serão os protagonistas do drama; os outros girarão ao redor deles, alinhando-se ou com um ou com outro: Deus ou Satanás, o Bem ou o Mal.
      Duas lógicas inconciliáveis, que significam duas maneiras de pensar o mundo, a história e o homem, que não pairam no alto, entre as nuvens, mas que penetram nas entranhas da matéria, nas fibras dos corpos, nas dobras do espírito, nas relações entre homem e mulher, na sociedade e entre as sociedades.
      Jesus embaterá com a lógica de Satanás sob mil rostos: os fariseus, os escribas, os saduceus, isto é, o poder religioso, dono do povo; Herodes e Pilatos, os zelotes, isto é, o poder político que, usa a violência e a esperteza; o povo, que quer transformá-lo num libertador dos invasores. Mas também entre os “seus”

04 março 2020

A estrela

Escura é a noite, o Sol se pôs, e a Lua não despontou.
Vamos nos trancar em casa, comer e conversar à luz do fogo.

   
“Uma estrela! Como uma esposa com a veste longa”.
Vamos sair para ver; é verdade, parece que fala.
A nós. Não palavras definidas, atrai-nos.
Ela se mexe. Vamos segui-la, não podemos resistir.
Para onde? Não importa, é a luz, é bonita, é quente.
     
Caminha. Caminha.
Estamos fatigados, mas não o coração.
Uma esperança, a esperança.
     
Olhemos para o céu, de lá vem a direção.
“Para onde vão?” Quantas vezes a pergunta!
Não sabemos. E sabemos.
Passo após passo, cada vez mais claro.
Para a luz.
     
A escuridão se faz espessa agora.
Tantas palavras, tantos sorrisos, tantas promessas.
Escuridão, frio. Onde está a estrela?Voltou, tem pressa.

A Luz!

03 março 2020

O aniversário do mundo

“Feliz Ano Novo!… Um Ano Novo abençoado!… Muitas felicidades!”
Um aniversário? Quem é o aniversariante?
2014. Um funcionário do metrô ou da ferrovia? Um preso?
Um número? Mas que brincadeira é esta?
Todos parecem felizes, os supermercados estão cheios, há jantares com amigos em casa ou no restaurante, danças, missas solenes de ação de graças.
Pensei, pensei, para responder. E arrisco: os homenageados somos nós. “Festejamo-nos” todos. Dos avós aos netinhos, do empresário ao trabalhador, do professor ao aluno, do presidente ao morador de rua.
Por quê?
Pela esperança. Trezentos e sessenta e cinco dias diante de nós: que sejam melhores que os trezentos e sessenta e cinco que passaram. Porque tudo é possível; temos uma grande folha branca na qual um artista anônimo pode pintar com as cores mais fascinantes. Talvez nem todos acreditem, mas no fundo esperam…
Mais ainda. É mesmo uma criança que nasce nos nossos braços e olha para nós. É preciosa como uma vida, delicada como uma vida, promissora como uma vida. É um presente.
Mais ainda. Está dentro de nós, no íntimo de cada um de nós. Somos nós. Eu. E você. Nós.
Minha festa, nossa festa. Encontro-me comigo mesmo, com o recém-nascido que sou. Quem sou eu? Quem serei?
Encontramo-nos juntos: quem somos? Quem seremos?
Uma semana antes, uma criança estava nos braços de uma mãe. É quem está em mim, entre nós.
Feliz Ano Novo!