30 setembro 2018

Um só é bom


“Seja feita a vontade de Deus” é uma expressão que, na maior parte dos casos, os cristãos proferem nos momentos de dor, quando não há mais o que fazer e, diante do inevitável fracasso de tudo o que se pensava, se almejava e se queria, vindo à tona a fé, se aceita o que Deus estabeleceu. Mas, não é só assim que deve ser feita a vontade de Deus. No cristianismo, não existe apenas a

“resignação cristã”.

A vida do cristão é um fato que tem raízes no Céu, além de tê-las na terra.

Por sua fé, o cristão pode e deve estar sempre em contato com Alguém que conhece a sua vida e o seu destino. E este Alguém não é desta terra, mas de outro mundo; e não é um juiz desapiedado ou um soberano absoluto, que só exige o serviço. É um Pai. Alguém portanto, que é Pai porque está em relação com outros, neste caso com filhos, filhos adotados pelo Único Filho que com ele habita por toda a eternidade.

Portanto, a vida do cristão não é nem pode ser determinada somente pela sua vontade e pelas suas previsões. Infelizmente, muitos cristãos acordam pela manhã na melancolia do tédio, que o dia que desperta trará.

Lamentam-se de muitas coisas passadas, futuras e presentes, porque são eles que traçam o programa de sua vida. E este desígnio, fruto da inteligência humana e de previsões mesquinhas, não pode satisfazer plenamente o homem, ávido de infinito. Eles se substituem a Deus, ao menos no que lhes diz respeito e, como o filho pródigo, uma vez tomada à parte que lhes cabe, desperdiçam-na como querem, sem o conselho do pai, sem a integração na família.

Muito freqüentemente nós, cristãos, somos cegos que abdicamos da nossa dignidade sobrenatural, porque repetimos de fato no Pai-Nosso, quem sabe todos os dias: “Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”; mas não entendemos o que dizemos, nem fazemos, nós ao menos, o que imploramos.

Deus sabe e conhece o caminho que deveríamos trilhar em cada instante de nossa vida. Para cada um ele fixou uma órbita celeste em que o astro de nossa liberdade deveria girar, se ele se abandonasse a quem criou o astro.

Órbita nossa, vida nossa que não contrasta com a órbita de outrem, com o caminho de bilhões de outros seres, conosco filhos do Pai, mas se harmoniza com eles num firmamento mais esplêndido que o estelar, porque espiritual. Deus deve manobrar a nossa vida e arrastá-la numa aventura divina que nos é desconhecida, em que, espectadores e, há um tempo, atores de admiráveis desígnios de amor, damos, momento por momento, o tributo de nossa livre vontade.

            Podemos dar! Não: devemos dar! Ou, pior ainda: conformamo-nos em dar!

Ele é Pai e, portanto, é amor. É o Criador, o nosso Redentor, o Santificador. Quem melhor do que Ele conhece o nosso bem?

“Senhor, seja feita, sim, seja feita, agora e sempre, a tua vontade divina! Seja feita em mim, nos meus filhos, nos outros, nos filhos dos outros, na humanidade inteira.

Tem paciência e perdão para conosco, cegos que não compreendemos e obrigamos o Céu a permanecer fechado e a não derramar sobre a terra os seus dons, porque, olhos cerrados, dizemos com a vida que é noite e o Céu não existe.

Arrasta-nos pelo raio de tua luz, de nossa luz, aquela que o teu amor estabeleceu quando nos criaste por amor.

Força-nos a dobrar os joelhos, a cada minuto, em adoração à tua vontade, a única boa, agradável, santa, nova, rica, fascinante, fecunda; a fim de que, quando chegar a hora da dor, possamos ver também, para além dela, o teu amor infinito. Possamos, plenos de ti, possuir os teus olhos, já aqui na terra, e observar, do alto, o divino bordado que fizeste para nós e para nossos irmãos, em que tudo resulta numa trama esplêndida de amor. E que se atenue do nosso olhar, ao menos um pouco, a visão dos nós que a tua misericórdia, temperada em justiça, carinhosamente atou, lá onde a nossa cegueira rompeu a tua vontade.

Seja feita a tua vontade no mundo e a paz na terra descerá segura, pois os anjos já no-lo disseram: ‘Paz na terra aos homens que ele ama!’ (Lucas 2,14).

E, se Tu disseste que um só é bom, o Pai, uma única é a vontade boa: a do teu Pai.




29 setembro 2018

Vida Trinitária


No Movimento, desde os primórdios tínhamos entendido que a fidelidade ao amor mútuo, vivido segundo o modelo de Jesus crucificado e abandonado (eis aí o “como”!), desembocaria na unidade segundo a vida da Santíssima Trindade.



      “Sabe até que ponto nos devemos amar?” — perguntamo-nos um dia, sem que, até então, tivéssemos conhecido o Testamento de Jesus — “Até nos consumarmos em um.” Como Deus, que, sendo Amor, é Trino e Uno.



      É exatamente “a lei do Céu” — escrevi eu então — “que Jesus trouxe à terra. É a vida da Santíssima Trindade que nós devemos procurar imitar, amando-nos entre nós, com a graça de Deus, como as pessoas da Santíssima Trindade se amam entre si”.



      E o dinamismo da vida intratrinitária é o mútuo e incondicional dom de si, é a total e eterna comunhão (“Tudo o que é meu é teu e tudo o que é teu é meu” [Jo 17,10]) entre Pai e Filho no Espírito.



      Portanto, percebemos que Deus imprimira no relacionamento entre os homens uma realidade análoga. “Senti” — escrevíamos ainda — “que fui criada como um dom para quem me estava próximo e quem me estava próximo foi criado por Deus como um dom para mim. Como o Pai na Trindade está todo para o Filho e o Filho está todo para o Pai.” E “a relação entre nós é o Espírito Santo, a mesma relação que existe entre as Pessoas da Trindade”.


28 setembro 2018

Viver dentro


Queremos converter‑nos Senhor. Até hoje, vivemos "fora", doravante, devemos viver "dentro", como Maria.

 Porque, mesmo o viver "fora", voltado para o próximo ou para as obras ‑ ainda que seja por amor a Deus se não for corrigido por uma força espiritual que atrai a alma continuamente para o seu íntimo, pode tornar-se motivo de divagação, com muito tagarelar inútil, com "coisas santas" dadas aos "cães".

 Viver "dentro", crescer interiormente, desapegar‑se de tudo, não para permanecer suspenso entre o céu e a terra, mas "enraizado" no Céu, fixo no coração de Cristo, através do Coração de Maria, numa vivência trinitária, prenúncio da vida que virá.

 Viver "dentro" e oferecer ao próximo unicamente a seiva que jorra do Céu dentro de nós, a fim de o servirmos realmente e não o escandalizarmos com a nossa tão pouca santidade.

 Viver "dentro", como Maria, a inigualável, a Mãe amada, a Rainha, a Guia que vence Satanás ancorada em Deus e não através de atitudes exteriores tão distantes dela como a terra do céu.

 Viver "'dentro", pregados na cruz por nossas próprias mãos, para que Cristo continue, também através de nós, a obra de reunificação de um mundo volúvel que sofre, que espera, que quer esquecer, que tem medo, e do qual se compadece hoje o nosso coração como ontem se compadeceu das multidões o de Jesus.

 Viver "dentro", para arrastar o mundo que vive apenas "fora", aos abismos dos mistérios do espírito, onde nos elevamos, repousamos, recebemos conforto, ganhamos novas forças e reencontramos alento para voltar à terra e continuar a batalha cristã até a morte.

 Às vezes, levamos muito tempo para nos desprendermos dos negócios, do mundo e das coisas, para

nos recolhermos e nos concentrarmos em Deus; contudo, logo que o fazemos, não mais desejamos voltar atrás, tão suave é para a alma a união com Deus.

 Deus está dentro de nós em solidão e não é possível encontrá‑lo sem que enfrentemos corajosamente, tam­bém nós, a solidão.

 Se Deus mostrasse a uma alma todas as dores que lhe reservou durante a vida, ela morreria no impacto. 0 mesmo aconteceria, se Deus mostrasse todas as ale­grias que a alma experimentará na vida.

 Deus sabe e dosa. A alma não sabe, mas abandona‑se nas mãos de Deus, que a ama.

 Se o silêncio do cimo das montanhas, se a imensa e solitária amplidão do mar, se uma excursão entre o céu azul e a branca rocha, se uma viagem de avião a dez mil metros, exercem uma real atração nas pessoas espirituais porque as levam ao recolhimento espontâ­neo e à oração, como se sentirão envolvidos pela oni­presença de Deus aqueles que, com a fé no coração, puderem afastar‑se desta terra e correr entre os espa­ços!                    

Deus!  Primeiramente 0 escolhes como o Tudo da tua vida, excluindo todo o resto que descobres fátuo e vão. Depois, contemplas com os Seus olhos os homens e as coisas, o mundo e a história, os acontecimentos grandes e pequenos... e 0 amas, presente na natureza e nos séculos.

Finalmente 0 "sentes" no fundo do teu coração. E Aquele, cuja existência aceitavas pela fé, manifestar-se‑á de um modo real, por mística e tangível demonstração. E acreditas que Ele existe, porque Ele está realmente no fundo da tua alma.

Caminhemos pelo mundo, encouraçados em nossa interioridade onde vive Deus. Saiamos somente para servi‑Lo no irmão ou no trabalho, tendo nas atitudes e no olhar a paz -  haurida no silêncio amoroso e infini­to da Santíssima Trindade que habita em nós ‑ e a luz ‑ que jorra como água inesgotável da Sabedoria eterna ‑ densa de alegria puríssima. Testemunhemos assim a

futilidade do mundo que nos circunda, para afirmar­mos, com os fatos, a existência de um outro mundo de maior valor, de maior importância e que há de rei­nar.

 É necessário que a nossa alma se recolha e se encontre com Deus. Se não estiver fixada neste único centro é como um pião que corre desgovernado, batendo de um lado e de outro. Centrada em Deus, cada uma das suas ações adquire significado, cada uma de suas atitudes para com os homens e as coisas se situa num plano sobrenatural. Caso contrário, tudo se esvai e não se percebe mais o motivo da existência.

 Não é verdade Senhor, que toda a nossa vida seja dor.

 Não é verdade, Senhor, que a sombra da cruz amargure todos os dias de nossa existência. É muito mais verdadeiro dizer que, para os que te amam, a dor representa uma grande parte, insubstituível; mas não é a única coisa que encontramos ao seguir‑te, pois vemos sobretudo a Ti, que és Amor, e transformas cada dor em encantamento. Assim a vida é vivida com centuplicado ardor.

Quando o homem se inclina, adorando a Deus presente no seu coração, não tem a sensação de estar se retraindo sobre si mesmo ou diminuindo‑se, mas abre‑se para horizontes mais vastos do que os contemplados pelos que voam pelo céu, mais amplos do que aqueles entre as miríades de estrelas.

 É a dimensão do espírito que supera qualquer limite e mergulha a alma em abismos de amor, onde frequentemente se desfaz em lágrimas porque o contato com Deus, a quem inadequadamente serve, lhe é mais íntimo do que ela própria.

 Se amares a Deus por longo tempo, e Ele te escavar a alma com abismos como só Ele é capaz, sentirás que não é mais possível perdê‑Lo. Se por acaso, a fim de servi‑Lo, tu deixas este colóquio direto, no primeiro instante em que te encontrares só, Ele voltará e Tu lhe falarás e saberás que Ele está presente, pois todo o teu ser clama por Ele só e, sem Ele, és como um nada sem sentido.

 Sem dúvida, Senhor, deves dominar o mais íntimo da alma dos teus servos, pois que muitas vezes, quando eles se recolhem para trabalhar, Tu os atrai para o mais íntimo do seu ser a fim de que retifiquem a intenção, segundo a tua vontade e te ofereçam, qual incenso, tudo o que fizerem.

 Quando reencontramos na solidão o contato contigo, reencontramos o contato com os homens e com as coisas, não como escravos mas como filhos de Deus.

 Alegrias e dores, consolações e angústias, arrependimentos e ressurreições, permissões de Deus e luminosas vontades suas, conquistas e perdas dolorosas, aprovação dos homens e difamações, lenta edificação de obras para a glória de Deus e florescer de conversões, tudo, ainda que no meio do joio de Satanás, semeado por toda parte, tem sempre, se amamos a Deus, um só destino, um único motivo: levar‑nos à união com Deus.

 Que sempre resplandeça no íntimo de nosso coração e tudo viva em função de Ti, em torno de Ti. Depois, não importa onde, como, se ou mas...

 Senhor, faze com que vivamos e voltemos com frequência, durante o dia escuro desta vida, ao outro Reino que está acima de nós, dentro de nós e que existirá depois de nós: o Reino onde o teu Nome é santificado, o Reino cujo advento, não será mais necessário pedir, após a chegada de todos.

 Ali vivem os Santos, os Bem‑aventurados, com a Virgem e o teu divino Filho na Trindade. E lá podemos de vez em quando nos retirar, a fim de trazermos para este mundo fátuo e vazio, órfão e solitário, triste e cheio de melancolia, aquele amor indefinível e suavíssimo que tudo anima, tudo penetra.

 Senhor, toma a nossa vida de tal forma imbuída de sobrenatural que, quando estivermos sós, caminhando, trabalhando ou estudando, quem passar ao nosso lado sinta o teu perfume. E quando juntos, quem nos encontrar sinta‑se fortemente atraído, a mergulhar no Reino de Deus, presente no meio de nós.

Quando a hélice de um avião gira vertiginosamente, não se consegue mais vê‑Ia. Quando uma alma

ama com intensidade, perde o seu peso humano e toma‑se transparente.

 Se, todavia, a hélice em movimento é tocada pelo sol, reluz em todo o seu esplendor. Do mesmo modo a alma que "vive". Em cada encontro com Deus transborda de Luz e canta com Maria: “A minha alma glorifica o Senhor"'.

 Às vezes, Senhor, existe algo no íntimo dos corações dos teus filhos, que atrai mais fortemente que inúmeras preferências naturais ou espirituais; algo mais puro que o ar do alto das montanhas algo mais vivo que qualquer outra vida, mesmo plena, pois ela parece loucura ou distração, diante da voz imperiosa que se ouve interiormente com grande ressonância.

"Jamais colherei uma flor," diz S. João da Cruz, para nos ensinar a não pararmos nas consolações terrenas... Sim, "jamais colherei uma flor" Te repetem estas almas, porque a flor das flores nasceu no fundo do pântano dos seus corações, como um milagre divino.

Aqueles que Te amam com sinceridade, não raro Te sentem, Senhor, no silêncio do seu quarto, no profundo do seu coração, e esta sensação comove a alma como se cada vez atingisse o seu íntimo.
E Te agradecem por estares tão próximos deles, por seres tão plenamente o seu Tudo: aquele que dá sentido ao viver e ao morrer.

Agradecem‑Te, mas muitas vezes não sabem fazê‑lo nem dizê‑lo. Sabem apenas que Tu os amas e que eles Te amam e que não existe algo mais suave aqui na terra que de longe ao menos lhe possa ser comparável. 0 que sentem na alma, quando Tu apareces, é Paraíso e "se o Paraíso é assim ‑dizem ‑ oh! como é esplêndido!”

 Agradecem‑Te, Senhor, pela vida inteira, por conduzi­-los até aqui. E se exteriormente ainda existem nuvens que poderiam ofuscar o seu paraíso antecipado, quan­do Tu Te manifestas, tudo se toma remoto e distante: nada existe. Tu existes. Assim é.

Se não fecharmos as janelas da nossa alma com o recolhimento, Tu não poderás, Senhor, entreter‑Te conosco, como o teu amor, às vezes, desejaria.

 Nós somos tão mesquinhos que, muitas vezes, para não fazermos o menor esforço, reduzimos a nossa alma a uma praça, onde todas as coisas do mundo surgem, entram e conversam. Deste modo, Tu, que nos ensinaste que não é bom dar as coisas santas aos cães, Tu que és o Santo, não Te podes dar a nós, embora muitas vezes o queiras, embora o nosso esforço, por pouco que seja, fosse imensamente recompensado pelo teu amor. Pois ele nos confortaria e sustentaria, dando‑nos a força para viver uma vida mais real no meio do permanente outono do mundo.

 Pode‑se chegar a um ponto em que uma palavra diz à alma todo um conteúdo divino, tão pleno, tão novo, que basta a própria palavra para exprimi‑lo, embora se perceba que ela não é suficiente para comunicá‑lo aos outros. Por exemplo: "Jesus", "Maria".

O grão de trigo desenvolve a sua vida debaixo da terra, coberto por uma camada de neve. De maneira análoga, a alma amadurece a sua união com Deus, isolada por uma camada de abandono.


27 setembro 2018

Viver a vida


O cristão é chamado a viver a vida, a nadar na luz, a abismar-se nas cruzes, mas não a enlanguescer. Nossa vida, ao contrário, às vezes é apagada; a inteligência, obscurecida; à vontade, indecisa. É que, educados neste mundo, fomos acostumados a viver uma vida individualista, que está em contradição com a vida cristã.

Cristo é amor e o cristão não pode deixar de sê-lo. E o amor gera a comunhão, a comunhão como base da vida cristã e como vértice.

Nesta comunhão, o homem não vai mais sozinho até Deus, mas caminha para Ele em companhia. Isto é um fato de incomparável beleza, que faz ressoar dentro da alma o versículo da Escritura: <Como é bom, como é agradável habitar todos juntos, como irmãos! (Sl 133[132],1).

A comunhão fraterna é uma conquista perene, com o resultado contínuo não só de manter esta comunhão, como de propagá-la entre muitos, porque a comunhão é amor, é caridade, e a caridade é difusível por natureza.

Quantas vezes, entre irmãos que decidiram caminhar unidos para Deus, a unidade enlanguesce, uma poeira se interpõe entre alma e alma, e cai o encanto, porque a luz que surgira entre todos lentamente se apaga!

Esta poeira é um pensamento ou um apego do coração a si mesmo ou aos outros; é amar a si mesmo por si mesmo e não por Deus; ou ao irmão ou aos irmãos por si mesmo e não por Deus; outras vezes, é o retrair a alma que se lançara pelos outros; é concentrar-se no próprio eu, na própria vontade, e não em Deus, no irmão por Deus, na vontade de Deus.

É amiúde um juízo incorreto sobre quem vive conosco.

Havíamos dito que queríamos ver somente Jesus no irmão, que trataríamos com Jesus no irmão, que amaríamos a Jesus no irmão, mas agora vem à mente a lembrança de que aquele irmão tem este ou aquele defeito, tem esta ou aquela imperfeição.

O nosso olhar se complica e o nosso ser não está mais iluminado. Consequentemente, rompemos a unidade, errando.

Talvez aquele irmão, como todos nós, tenha cometido erros; mas como Deus o vê? Qual é, na realidade, a sua condição, a verdade do seu estado? Se está em ordem diante de Deus, Deus não se lembra de mais nada, já cancelou tudo com o seu sangue. E nós, por que lembramos?

Quem está errado naquele momento? Eu, que julgo, ou o irmão? Eu.

Devo, pois, dispor-me a ver as coisas na perspectiva de Deus, na verdade, e tratar de igual modo com o irmão, pois, se por infelicidade, ele ainda não se tivesse reconciliado com o Senhor, o calor de meu amor, que é Cristo em mim, poderia induzi-lo ao arrependimento, assim como o sol absorve e cicatriza tantas chagas.

A caridade mantém-se com a verdade e a verdade é misericórdia pura com a qual devemos estar revestidos dos pés à cabeça, para podermos nos dizer cristãos.

O meu irmão retorna?

Devo vê-lo novo, como se nada houvesse acontecido e reiniciar a vida junto com ele, na unidade de Cristo, como da primeira vez, porque nada mais existe. Esta confiança o salvaguardará de outras quedas. E eu também, se com ele tiver usado tal medida, poderei ter esperança de ser, um dia, por Deus assim julgado.

26 setembro 2018

O QUE IMPORTA? AMAR-TE IMPORTA!



      O tempo é um lampejo e, em nossas mãos, só existe o instante efêmero. Ancorai-o em Deus e, ao passar, realizai apenas obras para o céu!

      Amai-o!

      Escutai o que Ele quer de vós em cada momento de vossa vida.

      Fazei isso com todo o ímpeto de vosso coração…

      Enamorai-vos de Deus, porque enamorar-se de Deus significa enamorar-se de sua vontade.

      Se, no momento presente, toda a nossa vida for um sim à vontade de Deus repetido com igual intensidade, veremos realizado de fato aquilo que tanto pedimos e por que tanto ansiamos: ser Jesus.

      Voltei de Trento, onde aquelas ruas, aquelas casas, aquele céu lembravam o grito do nosso coração de primeiras Gen2: “O que importa? Amar-te importa!”

      Pois é, nada tem valor: nem sofrer, nem se alegrar, nem trabalhar, nem conquistar o mundo. Só vale o Amor que, por Jesus, colocamos no momento presente da vida, vivida com seriedade.


25 setembro 2018

A cruz de cada dia


Vivendo o presente, podemos notar que — se for bem vivido — é sempre possível pôr em prática as palavras de Cristo: “Tome a sua cruz” (cf. Mt 16,24). Cada momento, quase, tem a sua cruz: pequenas, insignificantes ou grandes dores espirituais ou físicas, que acompanham a nossa vida no presente. É preciso “tomar” estas cruzes, não procurar esquecê-las, refugiando-se em uma vida sem compromisso.


E, mesmo que tudo seja saúde e alegria, é aconselhável vivermos isso desapegados, embora sendo gratos a Deus, e não nos inclinarmos avidamente para o dom, em vez de para o Doador, ficando depois tristes, com um vazio na alma.


24 setembro 2018

A pérola preciosa


Chiara, você nos disse, no “Pensamento espiritual” [1], que devíamos contar todos os dias os atos de amor a Jesus abandonado e oferecê-los cada noite a ele. Você nos comunicou também sua experiência a este respeito. Poderia nos contar alguma coisa mais?

Esses atos de amor, que são expressões de uma preferência por Jesus Abandonado diante de tudo o mais, levam-me a viver experiências especiais.
Antes de mais nada, sinto uma grande liberdade de espírito, porque com esses atos me liberto de tudo o que possa ser uma forma de apego.
Vivo, por este motivo (assim o espero), sempre com o Ressuscitado em meu coração e, portanto, com a alegria dada por ele.
Posso, através desses atos, dizer que amo a Deus de todo o coração, mente, forças, porque não dou valor a nada, a não ser à sua vontade.

Compreendo um pouco melhor a bem-aventurança: «Felizes os mortos que desde agora morrem no Senhor» (Ap 14,13). Então, estando desde já mortos a nós mesmos, nos preparamos para “aquela hora”.

Experimentamos o “nada” [2] de tudo, o olvido que tanto atrai, porque todas as coisas lhe são sacrificadas. Só ele permanece, dominando a vida.
Creio que Jesus aprecia uma vida concebida assim, e eu me “agarrei” a ela como àquela pérola preciosa da qual fala o Evangelho. Parece-me que não se pode encontrar nada melhor. Penso que foi Maria quem no-la indicou.
 

[1]              Mensagem enriquecida de notícias, transmitida por Chiara Lubich, através de conferência telefônica, uma vez por mês, aos Centros do Movimento dos Focolares e, depois, repassada a todos os seus membros.
[2]              O “nada”, de que fala são João da Cruz, é a etapa da santidade na qual a alma reconhece que Deus é tudo e vive, como um nada, abandonada nas mãos dele.

23 setembro 2018

A paz não foi derrotada


Devemos voltar a dar espaço à vida espiritual autêntica, fundamento da paz e do desarmamento global dos corações e dos exércitos, atuando uma verdadeira revolução: colocar Deus no centro da nossa existência, como já escrevíamos no dia seguinte ao atentado às Torres Gêmeas.

Quando agimos assim – como podemos comprovar em muitas partes do mundo –, o diálogo entre fiéis de religiões diferentes torna-se muito mais fácil, e não se utiliza mais a religião "para fomentar a violência (...), recorrendo até mesmo ao nome sacrossanto de Deus para ofender o homem", como disse o papa em janeiro 2002, por ocasião do encontro de líderes religiosos em Assis.

O aspecto mais visível da unidade é a fraternidade.

Ao que me parece, ela é certamente o caminho mais adequado para remar de volta rio acima, para sanar chagas já supuradas e para alcançar mais plenamente também a liberdade e a igualdade.

Aquela fraternidade que Jesus trouxe à terra fazendo-se nosso irmão e tornando-nos irmãos. É um caminho válido para quem tem nas mãos os destinos da humanidade, mas também para as mães de família, para os voluntários que levam ações de solidariedade pelo mundo, para quem coloca à disposição parte dos lucros da própria empresa a fim de eliminar espaços de pobreza, para quem não se rende à tentação de fazer guerra.

Assim, a fraternidade vinda "do alto" e aquela construída a partir "de baixo" encontrar-se-ão na paz.

O plano de Deus para a humanidade é justamente a fraternidade, que é possível de ser construída também com as pessoas de outros credos e de outras convicções, porque o amor fraterno está no DNA de todo homem, criado à imagem e semelhança de Deus.

Até mesmo o desenvolvimento tecnológico é favorável à fraternidade: a globalização nos oferece instrumentos extraordinários para a sua difusão.

Hoje, os meios de comunicação globalizam o medo, mas poderiam também globalizar a esperança.

Por que não usamos esses meios para unir os corações e dividir os bens?

Não nos rendamos, portanto! Das guerras, até mesmo das mais terríveis, muitas vezes surgiram surpresas morais inesperadas e energias inimagináveis.

E, quem sabe, a Providência Divina se servirá algumas vezes de situações de destruição provocadas pela liberdade do homem para construir, como novidade absoluta, aquilo que é necessário para dar novo alento à humanidade.

E muitos são os sinais de que, da grave conjuntura internacional, possa finalmente emergir uma nova consciência da necessidade de trabalhar juntos para o bem comum.

Todos juntos: povos mais ricos e menos ricos, sofisticados ou não nos seus armamentos, confessionais ou não, que têm a coragem de "inventar a paz".

Acabou o tempo das "guerras santas". A guerra nunca é santa, e nunca o foi.

Deus não a quer.

Só a paz é realmente santa, porque o próprio Deus é a paz.
Peçamos a ele, sem descanso, que nos presenteie com a sua paz.

22 setembro 2018

A felicidade

Talvez nunca como nestes últimos tempos sentimos a alegria de viver. E uma alegria pura jamais experimentada e nasce do fato de que: conseguimos encontrar!
Podemos até repetir uma frase que é a aspiração mais sincera de toda a humanidade: encontramos a felicidade.
É preciso, porém, experimentar esta felicidade, para compreender o que ela é.
Esta alegria puríssima só pode ser Deus. Aquele Deus que encontramos a cada instante, perdendo tudo no momento presente para sermos só a Sua vontade viva.
Creio que é um estado da alma, talvez um pequeno degrau alcançado, do qual, invocando o Senhor, com a esperança exclusivamente n’Ele, pedimos para não descer mais.
Não, porque esta felicidade em nós, coincide com a glória de Deus, com a extrínseca glória que a nossa alma pobre, porém tão amada por Deus, pode oferecer-lhe.
Encontramos verdadeiramente a pérola preciosa pela qual vale a pena vender tudo, perder tudo.
É Deus, o único que nos restará, daqui a pouco, ao passarmos para a eternidade, onde a nossa Mãe nos espera, sem dúvida contente de nos ter servido de “caminho” com a sua “desolação”.

21 setembro 2018

A IMENSIDÃO DE DEUS


Rocca di Papa, 22/01/87.



Caros amigos,



Desta vez gostaria de comunicarlhes uma pequena experiência que vivi nestes dias. Num momento de repouso, assisti a um documentário sobre a natureza. Ao contrário de outras transmissões feitas pela TV, que muitas vezes trazem à alma a poeira do mundo e deixam no coração um vazio (por isso precisamos ter muita prudência no uso deste veículo de comunicação), este programa produziu um grande efeito em minha alma.

            Contemplando a imensidão do universo, a extraordinária beleza da natureza, a sua potência, elevei-me espontaneamente ao Criador de tudo e compreendi de uma maneira toda original a imensidão de Deus. Esta impressão foi tão forte, tão nova, que me veio até mesmo o desejo de me ajoelhar para adorar, para louvar, para glorificar a Deus. Senti necessidade de fazêlo, como se fosse essa a minha vocação atual.

            E, como que se meus olhos se abrissem agora, compreendi mais do que nunca quem é Aquele a quem escolhemos por ideal, ou melhor, Aquele que escolheu a nós. Descobrio tão grande, tão imenso, a ponto de me parecer impossível que Ele tivesse pensado em nós. Esta impressão da sua grandeza permaneceu em meu coração por dias e dias.

            Dizer agora << santificado seja o vosso nome ... >> ou  <<Glória ao Pai, ao Filho, e ao Espírito Santo>> é muito diferente para mim. É uma necessidade do coração.

Caros amigos, Ottorino deixounos menos de três meses após a morte de Lionello. Ambos concluíram a sua Santa Viagem, como também Marilen, Aldo, Margareth e muitas outras pessoas queridas do nosso Movimento 1. Qual a tarefa deles agora no Céu, onde espero se encontrem (inclusive pela ajuda que todos nós juntos pudemos darlhes)?

            Para os habitantes do Céu, a principal tarefa é louvar a Deus, glorificálo, adorálo. Agora eles o vêem e não podem deixar de expressar todo o louvor possível.

            Nós estamos a caminho. Normalmente enquanto viajamos já pensamos no ambiente que nos acolherá na chegada; já pensamos na paisagem, na cidade, já nos preparamos. É assim também que nós devemos fazer agora. No Céu, louvaremos a Deus? Louvemolo então desde já. Deixemos que o nosso coração manifeste a Ele todo nosso amor; que, juntamente com os anjos, com os santos, com os mariapolitas celestes, proclame: “Santo, Santo, Santo!”

            Expressemos nosso louvor com as palavras e com o coração. Aproveitemos para reavivar aquelas orações que fazemos diariamente com esta finalidade. E demos glória a Ele também com todo o nosso ser.

            Sabemos que quanto mais nos anulamos (tendo por modelo Jesus Abandonado *0 que se reduziu a nada), tanto mais gritamos com a nossa vida que Deus é tudo e, portanto, o louvamos, o glorificamos, o adoramos. Mas, agindo dessa forma, também o nosso "homem velho" (cf. Ef 4,22) morre, e com a sua morte vive o "homem novo" (cf. Ef 4,24), a "nova criatura" (cf. Cor 5,17).

            Eis um outro modo de colocar em prática a Palavra de Vida do mês, que fala justamente da nova criatura, de Cristo em nós 2.

            Teremos diante de nós, como de costume, outros quinze dias para viver esta Palavra, se Deus o permitir. Procuremos vários outros momentos durante o dia para adorar a Deus, para louválo. Façamolo durante a meditação, em uma visita ao Santíssimo numa igreja, ou durante a missa. Louvemos a Deus para além da natureza ou no Intimo do nosso coração. E principalmente, vivamos "mortos" para nós mesmos e vivos para a vontade de Deus, para o amor aos irmãos.

            Sejamos, também nós, como dizia Elizabete da Trindade, “um louvor da sua glória” 3.

            Assim anteciparemos um pouco o Paraíso. E repararemos a indiferença que muitos corações hoje no mundo têm para com Deus.

20 setembro 2018

O AMOR – SÍNTESE DE TODAS AS PALAVRAS (A ARTE DE AMAR)


         Na meditação anterior, falamos do Evangelho, de como viver a Palavra de Deus. Desta vez, falaremos do amor, que é síntese de todas as palavras do Evangelho.

         Mas o amor que Jesus trouxe à terra é muito rico e, para vivê-lo bem, é necessário conhecer uma arte, ou seja, a arte de amar.

Ela significa um modo de viver, um “coquetel” espiritual, todo especial, no qual são contempladas todas as exigências evangélicas.

Chiara, no seu discurso no Capitólio, na ocasião em que recebeu a cidadania honorária de Roma, fez da Palavra o ponto central da sua mensagem. “A verdadeira arte de amar – afirmou – emerge toda do Evangelho de Cristo (...) É o segredo da revolução que permitiu aos primeiros cristãos invadirem o mundo então conhecido. É uma arte que exige esforço...”

         Ela requer, antes de tudo, que se supere o limitado horizonte do amor natural, dirigido simplesmente de uma forma quase exclusiva à família, aos amigos. Esse amor deve ser destinado a todos: ao simpático e ao antipático, ao bonito e ao feio, a quem é da minha pátria e ao estrangeiro, da minha religião ou de outra, da minha cultura ou de outra, amigo ou adversário ou até mesmo inimigo. É necessário, portanto, amar a todos como faz o Pai do Céu, que manda o sol e a chuva sobre os bons e sobre os maus” (Mt. 5,45).

         Este, portanto, é o primeiro ponto da arte de amar, como Chiara a propõe: amar a todos, sem distinção.

         Passemos, então, ao segundo ponto da arte de amar, aquele que, à primeira vista, pode parecer o mais árduo, o mais difícil de ser atuado.

         É aquele amor que, na escola do amor, nunca acabamos de aprender. Ele tem uma característica que o torna semelhante ao amor que Deus tem por nós.

         Um amor à imagem e semelhança de Deus: Amor “incriado” nele, amor “criado” em nós, mas um amor que ama primeiro.   

         “Não se pode amar a Deus primeiro, porque Ele nos precedeu e sempre nos precede no amor”, diz Chiara.

         Mas nós podemos, ou melhor, devemos sempre ser os primeiros a amar o nosso próximo. É isso que torna autêntico e desinteressado o nosso amor ao irmão. É um amor que, como o amor de Deus, não espera nada, não espera um gesto, uma palavra, um sorriso, para começar a amar, mas toma sempre a iniciativa.

          Agora, vejamos a terceira exigência: o amor verdadeiro não consiste somente em palavras ou sentimentos, mas é concreto. Atua-se bem o amor “fazendo-se um” com o próximo.

         É este um ponto crucial da arte de amar, que se tornou característica essencial da vida do Movimento.

         “Fazer-se um” são duas palavras mágicas – assim Chiara as definiu - que exprimem o nosso modo de amar.

         A verdadeira interpretação da palavra “amor”, “amar”, é o “fazer-se um”: penetrar na alma do outro o mais profundamente possível; entender verdadeiramente os seus problemas, as suas necessidades: carregar os seus pesos, assumir as suas preocupações e os seus sofrimentos.

         Então, terá significado o dar de comer, dar de beber, dar um conselho, oferecer uma ajuda.

         Chiara nunca escondeu as dificuldades desta práxis evangélica.

“Fazer-se um” – ela adverte – não é uma coisa simples.

         “Fazer-se um” exige um vazio completo de nossa parte: tirar todas as idéias da nossa mente; todos os afetos do coração, afastar tudo da nossa vontade, para nos identificarmos com os outros.”

         Mas, “Ele quer que, a cada dia, a cada hora, nos aperfeiçoemos nesta arte, às vezes cansativa e extenuante, mas sempre maravilhosa, vital e fecunda, de “fazer-se um” com os outros: a arte de amar.”

          E, finalmente, o quarto ponto da arte de amar.

         É necessário amar Jesus no irmão. Esta postura é imediata e clara, se pensarmos no Juízo Final, quando Jesus dirá aos bons: “Vinde benditos do meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde o princípio do mundo. Pois tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber. (...)”

         Então, os justos lhe responderão, dizendo: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? (...)” Respondendo, o rei lhes dirá: “Em verdade vos digo: toda vez que fizestes estas coisas a um só dos meus irmãos menores, fizestes a mim” (Mt. 25, 34-40).

         Quando amamos um irmão ou uma irmã é, portanto, também Jesus que se sente amado neles.



Preparado por Enzo M. Fondi

19 setembro 2018

Uma nova estação


29 de junho de 1948
O destino da árvore frutífera dá um pouco a imagem do homem que frutifica na sua estação fecunda. Até quando floresce, ao redor da árvore há cantos e trinos, zéfiro e sol;

e quando amadurece suas maças, a natureza inteira, orgiástica, envolve-a de calor. Depois, os agricultores retiram-se aos refeitórios, aos tinelos e aos celeiros e, após algumas palpitações de vida e cores no outono, penetra o frio silêncio, sob o céu cinzento, donde as folhas, como últimas lágrimas, caem na terra seca. E assim acontece ao homem quando superou a idade de maior rendimento. Desilusões e amizades caem, como as folhas, e o silêncio sobem de todos os lados, a paisagem se entristece e ele permanece sempre a contemplar, mudo espectador, o avanço de sua própria ruína.
Da mesma forma, como naquele frio e naquela solidão, a árvore prepara a nova primavera, concentra calor e seiva, assim o homem pode fazer daquele afastamento invernal de amigos e de forças a concentração de um vigor pleno de uma nova existência: utilizar aquele abandono dos homens para aderir a Deus, preencher aquela perda de humanidade com a graça divina. E então, dentro do silêncio agigantado pela ingratidão e avareza, sobre a velhice descamada e fria, pode encher-se do calor de Deus, ascender interiormente enquanto declina externamente: dar aos homens um fruto que não se conta na economia, mas se calcula na teologia. No inverno do homem começa a primavera de Deus.

21 de junho de 1965
O tronco torna-se sempre mais desfolhado, nu. Desaparecendo as flores, cortados os frutos (quem os comeu?...), caíram às folhas, romperam-se os ramos. Humanamente, haveria lugar para o desespero.
Divinamente, ao invés, podemos ter esperança poIs que esta diminuição é uma diminuição do homem a fim de que Deus nele cresça: sempre há compensação — há quase a teandria[1] — mas à parte de Deus cresce anelando fazer-se tudo, até que chegue o dia em que não existas mais; existe Ele, e te tomas parte d’Ele, e do nada te fazes tudo.


2 de janeiro de 1960

Com o passar dos anos, os velhos, em muitos casos, retornam á religião ou se tornam mais religiosos. Esta evolução é chamada involução, este progresso, regresso, senilidade. No entanto, é um aviso instintivo da aproximação de Deus, ou melhor, da casa.

Da árvore caem as folhas, o tronco abre os ramos para o céu; recebe água, é envolta pela névoa, ferida pelos raios; olha para o alto, não mais iludida com a folhagem, não mais iludida com aquilo que passa, já habituada, prelibando o que permanece. A minha pessoa morada de Maria, situada na sua vontade, recolhe-se, sempre mais, à morada do amor Eterno, cuja obra-prima é a Mãe.



24 de agosto de 1960

Aparece nos jornais, com frequência, que algum velho — quase sempre aposentado — sobe ao sétimo andar e dali se jogam no vazio para pôr fim à vida. Ou, mais exatamente, à solidão que sofria, a doença dos velhos, criaturas arrancadas da massa para o isolamento, do rumor para o silêncio.

É uma solução lógica, embora errada.

A velhice é uma reviravolta critica, decisiva: a fase de preparação para o encontro com o Tudo, com o Eterno, com a Beleza: o encontro com o calor da juventude que não morre. É um período de evolução que chamam involução; de progresso que chamam regresso; de juventude do espírito que chamam senilidade.

O mal-estar físico e moral denota a inquietude diante da proximidade de Deus. Nessa idade avançada, a existência humana aparece como uma árvore no inverno. Ao cair das folhas, o tronco abre os ramos nus e secos para o céu e recebe água, nuvens e raios sem nenhum amparo. Mas, livre do ornamento do verde, olha direto para o alto, não mais iludido pela folhagem nem por aquilo que, florescendo de repente, cresce e morre.

E habitua-se a conversar com o céu, a sondar as nuvens, explorar as estrelas, percebendo, aos poucos, um mundo novo sem rumores e aparências.



23 de junho de 1958

Ao observar, cheio de pena, o cair das folhas (ilusão de fama, poder e amizade) da árvore da minha vida, neste outono que caminha para o inverno, percebo, melhor, que a solidão, sempre mais profunda e densa, que me rodeia é causada para efetuar um encontro amoroso mais intenso com Deus: a alma encontra finalmente tempo e conforto para estar com o Esposo. Chamam — esta — solidão, de aproximação da morte, mas é um encaminhamento para a vida. Agora, finalmente, posso deixar a minha alma escutar o Espírito Santo, conviver com os anjos e bem-aventurados, unir-se a Cristo, unir-se a Deus. E Deus é a vida. Antes, inúmeras distrações e interrupções impediam a passagem do espírito divino, que é a Vida; agora, a união, aos poucos, torna-se constante. Aprendo e preparo a vida do paraíso.

Sempre quis atingir Deus porque sempre tive fome de vida. No entanto, mesmo ao aproximar-me d’Ele, como válvulas, intercalava os meus estudos, as minhas amizades, os meus hábitos. Frequentemente comprazia-me neles, parava diante das criaturas e dos fantasmas, sacrificava o essencial ao acessório, o divino ao humano.





15 de novembro de 1957

Estou chegando ao outono da vida: os últimos frutos foram colhidos e consumidos, as últimas folhas levadas pelas ondas frias do vento. Bem sei que a juventude interior resiste fortificada pelas provações. A carência de afetos e contentamentos vindos dos homens a temperaram e quase a aguçaram, proa que avança rumo ao mistério. De tal maneira que a flor fecha-se ao anoitecer da vida para reabrir-se na eternidade.



6 de dezembro de 1957

Se a existência física é uma combustão, façamos do nosso corpo um turíbulo onde se versa, sem trégua, o incenso da oração. Assim, por um outro aspecto, é a união do humano e do divino, do corpo e do espírito; sempre uma projeção da unidade, do Homem-Deus. Todo ato de caridade derramado sobre aquelas brasas há de acender uma chama. Toda dor que nos for oferecida produzirá cinza e será uma consumação, como a chama do altar, se todo o amor, o sofrimento — o sofrimento transformado em amor

— for destinado para onde a gravitação o transporta: ao Amor Eterno. A química torna-se suporte da mística. Dá-se à natureza a possibilidade de libertar-se, abre-se a sua boca à oração. Também a matéria e as células foram criadas para voltar ao Criador.



26 de fevereiro de 1957

Têm razão quando comparam o ciclo da existência com o ciclo das estações. Ela é como a árvore que cresce, floresce e frutifica enquanto entre seus ramos, os pássaros fazem seus ninhos. Depois vem a má estação, os trabalhos e o tempo, e desfolha os ramos e os resseca: até que o divino podador os poda. Poda e reduz a planta ao essencial: a uma cruz.



15 de novembro de 1957

Caem as folhas e os frutos, e nas ervas secas do chão floresce outra primavera. Na solidão dilatada pelo próximo inverno, Deus aparece, aproxima-se, e com Ele, o relacionamento se torna mais íntimo e imediato. Na medida em que perdemos na economia humana, adquirimos na economia divina. As criaturas se distanciam para que eu me enlace ao Criador. Não encontro amor para encontrar o Amor.

A estação findará, findará também a ação com a reação dos homens, quando, finalmente, estiver com Deus. Nele não há mais história, que é um registro do tempo, quase uma crônica fúnebre. Na eternidade, a vida é pura e plena porque se desenvolve em unidade com Deus. E Deus está além do tempo com suas estações, frutos e folhas.

Vista assim, a existência é uma árvore que cresce para o céu a fim de florescer na eternidade. Estações e tragédias, desilusões e sofrimentos são podas. A árvore cresce sob uma amarga chuva (água e sol, o pranto) para mondar-se, até tornar-se pura haste elevada da terra ao céu.

A vida não é senão um processo de amadurecimento pela purificação que a dor traz. Quando amadurece, é Deus quem colhe o fruto, transplantando a árvore ao paraíso.



24 de junho de 1960

O amor é a linfa que faz a flor crescer. No homem, alimenta a liberdade; a vida no amor revela-se como um desenvolvimento na liberdade: processo de libertação. Somos de tal maneira ligados aos nossos limites, como galhos ao tronco, que quando estes aos poucos, vão sendo podados, parece-nos uma perda, mas na verdade é um ganho.

(Diário de Fogo Igino Giordani, 1980)



1.         Teandria, no seu sentido original, diz respeito à “natureza humano-divina de Jesus”: no texto:
             o “humano no divino”. (n.d.t.)

18 setembro 2018

Conclusão: Alarguem o espirito de família



E hoje, em sintonia com a nova vontade de Deus que nos foi expressa pela Igreja na pessoa do Papa João Paulo II na véspera de Pentecostes 1998, na Praça de São Pedro, eu digo: alarguem este espírito de família a todos os Movimentos e Comunidades eclesiais existentes; ofereçam o amor de vocês a todas as famílias religiosas que conosco representam o aspecto carismático da Igreja; não hesitem em oferecê-lo generosamente a Cristo que vive em todos aqueles que representam o seu aspecto institucional, para que a “Igreja-comunhão” seja uma realidade no Terceiro Milênio. E não esqueçamos aqueles que estão fora da Igreja, no mundo, pelo qual Jesus se encarnou e que nós somos chamados a incendiar.

O carisma da unidade do Movimento sempre nos orientou, a propósito de todos os aspectos da nossa vida, a pensar — por modo de dizer — em grande estilo. Isto é, a considerar, por exemplo, a saúde não só física, mas também espiritual, não só pessoal mas também coletiva.

De fato, nós ligamos a este assunto realidades espirituais como a presença de Jesus em meio e a Santíssima Eucaristia.

Jesus em meio, porque a perfeita saúde da nossa alma depende da sua presença entre nós. A nossa típica espiritualidade exige que se alcance a saúde espiritual em companhia. Como homens e cristãos somos o que devemos ser só estando em relação com os outros. É a inter-relação, o amor ao próximo que nos faz ser plenamente nós mesmos, ou seja, outro Jesus. Por isso, para podermos dizer que somos sadios espiritualmente e completos, perfeitos, realizados, na plenitude da alegria, devemos amar os irmãos até fazer com que Jesus esteja entre nós.

Unimos este aspecto também à Santíssima Eucaristia não só porque é causa da nossa ressurreição, na qual veremos aperfeiçoada e perpetuada a saúde espiritual e física, mas também porque é por ela, pela Eucaristia, que nos tornamos concorpóreos e consangüíneos com Cristo; é ela que nos transforma no Cristo que recebemos, que nos faz ser Cristo e é assim a nossa saúde espiritual.

Comecemos, então, o novo ano Ideal em todo o Movimento cuidando com atenção da saúde física e espiritual nossa e de todos, para a glória de Deus e para o bem de muitos.




17 setembro 2018

Dar o primeiro passo


Outro passo da arte de amar, talvez o que requer mais empenho de todos, que põe à prova sua autenticidade e sua pureza, pede que amemos primeiro, tomando sempre a iniciativa, sem esperar que o outro dê o primeiro passo.

      Esse modo de amar nos expõe em primeira pessoa, mas, se quisermos amar à imagem de Deus e desenvolver essa capacidade de amor que Deus colocou em nossos corações, temos de fazer como Ele, que não esperou ser amado por nós, mas nos demonstrou, desde sempre e de mil maneiras, que Ele nos ama primeiro, qualquer que seja a nossa resposta.

      Fomos criados como um dom uns para os outros e cumprimos esse nosso ser pondo todo o empenho pelos nossos irmãos e irmãs com aquele amor que antecede qualquer gesto de amor do outro.

16 setembro 2018

Coração da Humanidade


Narra a Escritura que bastaram à Serpente poucas palavras para induzir a mulher ao pecado e a ele arrastar, atrás dela, o gênero humano.

            “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal” (Gn 3,4-5). E ela acreditou.

            O fenômeno de então repete-se de quando em quando com tonalidade diversas, mas, de qualquer modo, tem em comum o lisonjear e transferir o gênio feminino – sempre dedicado e, portanto mais propenso às coisas grandes, até mesmo no erro – para um plano diferente do seu.

            Também hoje, na balbúrdia de mil vozes que exaltam ora uma, ora outra deformação do pensamento, uma tendência infiltrou-se e avançou muito: conceber e fazer a mulher entender – tendo na base o dolo – que “serás como o homem”.

            Procura-se exaltá-la para depois precipitá-la no abismo do absurdo, após tê-la defraudado daquilo que realmente constituía a sua beleza.

            A mulher não precisa dar ouvido a essas vozes desafinadas para cantar aquilo que o criador nela imprimiu e que é insubstituível.

            Houve uma vez respeitabilíssima, a do papa Pio XII, o qual, além dos sobrenaturais, aliava em si a idade do sábio e um entendimento secreto e profundo com Nossa Senhora. Ele, lapidarmente, definiu a mulher – e creio que ninguém no mundo jamais tenha chegado a tanto – como “obra-prima da criação”.

            Basta isto para dizer o amor de Deus para com o sexo feminino.

            Mas a mulher será uma obra-prima se realmente for mulher.

            Em seu ser - mulher está a certeza de cada atributo seu.

             A mulher é meiga, a mulher tem o coração palpitante de religiosidade, talvez porque, mais do que o homem tem o sentido e a constância no sacrifício, na dor, na qual, em última análise, o Evangelho se concentra como último passo para o amor.    

            Como mãe, e mãe santa, ela é o instrumento primeiro, benéfico, insubstituível, não só de ensinamento retos, mas de união entre os corações dos filhos que, para compor uma sociedade eficaz e produtiva, sã e saneadora, amanhã, de nada melhor precisarão do que perpetuar nela a união fraterna, base de toda paz duradoura. 

            A mulher deve ladear o marido em uma posição aparentemente secundária, mas é como a sombra de uma escultura que lhe confere relevo e vida. Através dela, se for realmente mulher, depois esposa, e depois mãe, o homem conhecerá o seu limite ao lado de um anjo que lhe mostrará com a maternidade o que sabe operar o Senhor, o Criador, o Dispensador de todo bem.

            Em tempos como os atuais, saturados de ateísmo e de aniquilamento do espírito, a mulher, com o seu natural instinto para Deus, com sua perene vocação para o amor, com sua perspicácia nas coisas e nos fatos, pela qual dá àquelas e a estes sabor e sentido, tem uma missão de primeira grandeza na renovação e recuperação da sociedade.

            E por realiza-la. Homens e mulheres, quando crianças, são criados e instruídos em seu regaço.

            Dela muito se espera hoje para a renovação da sociedade. Esta carência de Deus, este descaso que d’Ele se faz, esta luta aberta contra Ela, pode transformar-se amanhã numa expectativa, permitida pelo Céu, de uma grande época, triunfo de Deus, onde Ele, Majestade infinita, estará na boca de todos, no coração de todos, inspirador das mais belas artes, mentor nas mais altas descobertas, veia de poesia eterna, acorde de um canto novo.

            Após o temporal vem a bonança e quiçá o arco-íris.

            Esta aridez forçada, este ter privado o homem do elemento vital e vivificador, faz esperar e talvez prever um tempo não longínquo, em que a glória de Deus haverá de fulgir e os homens dirão uns aos outros com consolação e no pranto: “Onde estão os tempos em que Deus era esquecido ou até mesmo era proibido falar d’Ele?” E acrescentar-se-á: “Tinha razão Pio XII quando, olhando para o futuro, previa uma nova primavera”.

            Se as mulheres tiverem feito sua parte, poderão dizer: “Quando a mulher é outra Maria, quer dizer, virgem, mãe, esposa, pranto, paraíso, mas sobretudo “portadora de Deus”, pode fazer muito por todos, porque a mulher, se é mulher, é o coração da humanidade”.