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23 agosto 2016

Convite triste

Meu amigo, vamos sofrer, 
vamos beber, vamos ler jornal, 
vamos dizer que a vida é ruim, 
meu amigo, vamos sofrer. 

Vamos fazer um poema 
ou qualquer outra besteira. 
Fitar por exemplo uma estrela 
por muito tempo, muito tempo 
e dar um suspiro fundo 
ou qualquer outra besteira. 

Vamos beber uísque, vamos 
beber cerveja preta e barata, 
beber, gritar e morrer, 
ou, quem sabe? beber apenas. 

Vamos xingar a mulher, 
que está envenenando a vida 
com seus olhos e suas mãos 
e o corpo que tem dois seios 
e tem um embigo também. 
Meu amigo, vamos xingar 
o corpo e tudo que é dele 
e que nunca será alma. 

Meu amigo, vamos cantar, 
vamos chorar de mansinho 
e ouvir muita vitrola, 
depois embriagados vamos 
beber mais outros sequestros 
(o olhar obsceno e a mão idiota) 
depois vomitar e cair 
e dormir. 

(Em: Brejo das Almas)


17 agosto 2016

Casa arrumada

Arrume a casa todos os dias… Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo para viver nela…
Casa arrumada é assim: Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não centro cirúrgico, um cenário de novela. Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas… Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida…
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar. Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha. Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa. E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde. Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, tudo junto…
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda. A que está sempre pronta pros amigos, filhos… Netos, pros vizinhos… E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia.
Arrume a casa todos os dias… Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo para viver nela… E reconhecer nela o seu lugar.

30 junho 2016

Certas palavras

Certas palavras não podem ser ditas 
em qualquer lugar e hora qualquer. 
Estritamente reservadas 
para companheiros de confiança, 
devem ser sacralmente pronunciadas 
em tom muito especial 
lá onde a polícia dos adultos 
não adivinha nem alcança. 

Entretanto são palavras simples: 
definem 
partes do corpo, movimentos, actos 
do viver que só os grandes se permitem 
e a nós é defendido por sentença 
dos séculos. 

E tudo é proibido. Então, falamos. 


20 março 2014

Canção Final

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.