17 outubro 2022

Compromisso civil e político

A vida de Igino é repleta de momentos extraordinários e experiências coerentes e corajosas. O retrato que emerge do mosaico de suas escolhas e iniciativas mostra um heroísmo a serviço da humanidade, guiado pelo amor a Deus e sustentado pela fidelidade à Igreja. Aqui estão alguns elementos.

Estamos em 1925 e Igino Giordani é diretor da Parte Guelfa, um periódico muito crítico do regime fascista e defensor das razões dos católicos. A Santa Sé, no entanto, está preparando os Pactos Lateranenses, ou seja, o acordo com o Estado italiano, e a voz de Giordani lhe incomoda, porque deixa o regime nervoso. De L'Osservatore Romano vem um distanciamento do Partido Guelfo e seus autores, e Igino imediatamente fecha essa revista, em obediência à Igreja, sem hesitação.
É o ano de 1933 e um alto prelado desafia Higino sobre a forma de dirigir a revista Fides, uma revista pontifícia que pela primeira vez foi dirigida por um leigo. Percebendo que o tempo para a plena confiança no trabalho dos leigos na Igreja ainda não está maduro, Igino se demite. Foi remanejado seu cargo e restaurou a plena confiança que nunca lhe faltou, tendo em vista que o episódio de protesto foi uma iniciativa isolada.
É 1944 e, em uma Roma livre do fascismo, equipes de guerrilheiros vagam pelas ruas, tirando os velhos hierarcas fascistas de suas casas para executá-los na hora. Eles chegam ao prédio Igino, onde mora um idoso fascista que os guerrilheiros querem fuzilar. No tumulto da situação, alguém lhe pede ajuda e Igino calmamente vai até o comandante da patrulha partidária, conversa com ele e o convence a desistir da execução sumária. Enfia um de seus livros debaixo do braço, depois de ter assinado uma dedicatória personalizada, cumprimenta-o e tudo se resolve pacificamente.
Estamos em 1948 e querem nomear Igino para a Câmara dos Deputados. É uma corrida de muitos para os melhores lugares, depois que o regime acaba, mas Higino não. Ele pede a seu amigo, Mons. Giovambattista Montini, o que você acha disso, e ele recebeu um parecer favorável de Montini. A sua ação permanece sempre profundamente eclesial.
"Pode um político ser um santo?" Um santo pode ser um político? Tente a solução da questão em si mesmo agora que você se torna um político ».
É o ano de 1949 e no tribunal inflamado, onde a oposição entre os partidos políticos tem tons de violência verbal e física, discute-se a adesão da Itália ao Pacto do Atlântico. Igino Giordani toma a palavra, ao lado dele está Tarcisio Pacati, outro ilustre membro que se juntou ao Movimento dos Focolares e, em voz baixa, dá um sinal de unidade ao seu amigo Igino, declarando-lhe: "mantenhamos Jesus no meio ", ou seja, vamos traduzir em experiência do momento a promessa de Jesus contida no Evangelho de Mateus (18, 20), pela qual dois ou mais estão reunidos em nome de Jesus, ele está ali, entre eles. E, de fato, lentamente o clima político muda. Igino sente que a Europa pode realizar uma ação de pacificação mundial em um mundo marcado pela oposição ideológica entre o Oriente e o Ocidente do mundo. Ele entende que a única maneira de alcançar a justiça social é fundar uma economia baseada na comunhão de bens. Desta forma, as diferenças ideológicas que opõem os socialistas aos liberais serão resolvidas. No final, um aplauso geral reúne todos em torno das razões da paz.
Era 1950 quando Igino iniciou um diálogo, a partir das páginas dos jornais que dirigia, com o diretor do jornal comunista l'Unità. Trocam exortações e comentários, perguntas e respostas, procurando alcançar objetivos comuns sobre os mesmos motivos da paz e da vida boa e feliz dos pobres. Tudo isso, em um clima político em que os comunistas foram excomungados da Igreja. Giordani foi deplorado por seu partido pela escolha profética de buscar razões de convergência e reconciliação com adversários políticos.

Popularismo e antifascismo

Depois da guerra há um país a ser reconstruído e Don Luigi Sturzo procura jovens inteligentes que possam ajudá-lo a fazer crescer o Partido Popular. Ele conhece Igino e o emprega na assessoria de imprensa do partido. Igino começa seu trabalho como jornalista, muitas vezes assinando artigos importantes denunciando o sistema fascista que começa a sufocar as liberdades dos italianos.
O fascismo pressiona e força muitas personalidades políticas ao exílio. Sturzo também é forçado a se mudar para Londres. O Partido Popular está se dissolvendo lentamente, parece que ninguém mais consegue curá-lo. O último a não abandonar o navio é Igino Giordani, que continua a publicar o boletim político do partido mesmo quando a polícia fascista proíbe a circulação de todos os periódicos políticos. No final, estamos em 1926, Igino encontra-se sem emprego. Ele começa a lecionar em escola pública, mas é forçado a se demitir porque não é fascista e não pode ocupar um cargo público.
"Encontrei um substituto no Liceo Mamiani em Roma, mas alguns alunos e colegas logo perceberam que eu não estava participando da retórica e liturgia oficial do regime, fazendo-me entender que era melhor eu sair antes de ser colocado em a porta".
Ele consegue um emprego na Biblioteca Apostólica do Vaticano, mas primeiro vai para os Estados Unidos da América, onde estuda a ciência moderna da biblioteconomia. Foi nos EUA que se tornou terciário dominicano, atraído sobretudo pela figura de Santa Catarina de Sena, e entrou em contato com o mundo protestante, desenvolvendo uma notável sensibilidade ecumênica.
Ao regressar à Itália, tem todas as credenciais para conquistar o cargo de professor universitário de Literatura Cristã Antiga, tendo publicado em anos anteriores as traduções e comentários de alguns padres da Igreja. Mas o Ministério bloqueia tudo. Igino não é fascista, ponto final: não pode aspirar a carreiras importantes. Após a Segunda Guerra Mundial, os partidos vão virar: Igino será consultado pelo Ministério para um parecer sobre um candidato a magistério universitário com passado fascista. Higino não se vinga, responde de acordo com a verdade e a justiça, e a prática continua.

07 outubro 2022

Meditação e experiência

No Parlamento Italiano, com Igino Giordani 


O encontro do dia 14 de junho foi promovido pela Presidência da Câmera dos Deputados, para recordar a figura de Igino Giordani (1884 – 1980). Personalidade poliédrica do século XX, deputado no Parlamento Italiano de 1946 a 1953, escritor, jornalista, ecumenista, patrólogo, Igino Giordani deixou marcas profundas e abriu perspectivas proféticas em nível cultural, político, eclesial e social.  Os trabalhos foram presididos pelo presidente da Câmera, Gianfranco Fini. Entre outros, pronunciaram-se Alberto Lo Presti, diretor do Centro Igino Giordani, que apresentou a figura política e a ação parlamentar de Igino Giordani; parlamentares e jovens, italianos e de outros países, que testemunharam a influência do pensamento e da ação de Giordani e Maria Voce, de quem publicamos o discurso, na íntegra.

 

«Agradeço ao Excelentíssimo Sr. Gianfranco Fini, Presidente da Câmera dos Deputados, pela ocasião que me é dada de dirigir-lhes uma saudação, neste encontro sobre Igino Giordani, um dos pais constituintes da República, e que nós consideramos um cofundador do Movimento dos Focolares, que hoje represento.

Dirijo ainda minhas saudações pessoais a todos os excelentíssimos senhores senadores e deputados presentes, às autoridades e a todos os participantes deste encontro.

Era o dia 17 de setembro de 1948 quando, justamente aqui, na Câmera dos Deputados, Igino Giordani recebeu Chiara Lubich, uma jovem de 28 anos, de Trento, acompanhada por alguns religiosos.

Para Giordani tratou-se de um encontro inesperado tanto quanto extraordinário. A partir daquele momento ele não foi mais o mesmo.

O que disse Chiara Lubich, que palavras usou para entrar tão profundamente na alma do eclético político de então?

Sabemos alguma coisa. De fato, ao término do encontro, S.Exa. Giordani, bastante tocado por aquilo que havia escutado, convidou Chiara a colocar por escrito o que havia acabado de dizer, para publicá-lo depois, numa revista que ele dirigia. No mês sucessivo saiu o artigo, que inicia com o relato de como nasceu o ideal da unidade, sob os bombardeios:

Eram tempos de guerra.

Tudo desmoronava diante de nós, jovens, apegadas aos nossos sonhos para o futuro: casas, escola, pessoas queridas, carreira.

[…]

Foi daquela devastação completa e multíplice, de tudo o que formava o objeto do nosso pobre coração, que nasceu o nosso ideal. […]

Nós sentíamos que apenas um ideal era verdadeiro e imortal: Deus.

Diante do desmoronamento provocado pelo ódio, revelou-se, vivíssimo diante da nossa jovem mente, aquele que não morre.

E o vimos e o amamos na sua essência: «Deus caritas est».

«Eram tempos de guerra».

Igino Giordani podia considerar-se um garantido especialista neste assunto. Ele havia vivido a guerra em primeira pessoa, nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, conhecendo a atrocidade dos massacres e sendo, ele próprio, gravemente ferido. Era um especialista do absurdo de todo conflito armado, e tinha conquistado um nome na cultura italiana, como verdadeiro defensor da paz.

Mas o tema das palavras de Chiara não era a o horror da guerra. Chiara contou como, anos antes, na sua Trento bombardeada, enterrada nos escombros, vislumbrou um ideal inatacável: Deus. Ele revelou-se aos seus olhos não como uma esperança derradeira, um desejo remoto, mas como amor que circula entre todos, fogo que devia ser conservado e alimentado pelo amor recíproco, capaz de realizar a promessa de Jesus: «Onde dois ou três estão reunidos em meu nome eu estou no meio deles» (Mt 18,20).

Não é difícil acreditar que o deputado Giordani tenha ficado tocado. Estava se revelando aos seus olhos um Evangelho vivo. Aquele Jesus, que Chiara estava mostrando, entrava na história dos homens como amor, e guiava a humanidade rumo à fraternidade universal, rumo à unidade. Na sua autobiografia, relembrando aquele encontro, Giordani nos revela a emoção provada:

Quando ela terminou de falar eu estava tomado por uma atmosfera encantada […]; e teria desejado que aquela voz continuasse. Era a voz que, sem me aperceber, havia esperado.

Esta colocava a santidade ao alcance de todos: retirava os cancelos que separam o mundo laical da vida mística. […]

Aproximava Deus: fazia senti-lo Pai, irmão, amigo, presente na humanidade.

Em Chiara e nas suas primeiras companheiras era evidente que um ideal vasto como a unidade, deveria abraçar o mundo inteiro. Mas como um grupo de moças tão jovens poderia chegar a toda a humanidade?

Quem sabe se Giordani se fez esta pergunta! Mas hoje sabemos, pelas próprias palavras de Chiara, que o encontro com Igino Giordani foi para ela o encontro com aquela humanidade. O ideal da unidade, de Chiara Lubich e das suas primeiras companheiras, era feito para todos e para todas as realidades humanas, e Giordani estava ali, testemunhando isso.

Hoje a trama deste desígnio é visível. O Movimento dos Focolares está presente em mais de 180 países do mundo, e conta mais de dois milhões de aderentes e simpatizantes, de extrações sociais e referências culturais as mais várias.

Retornei recentemente de uma viagem à Europa Oriental, onde as comunidades do Movimento estão presentes desde 1961, quando os primeiros membros ultrapassaram a cortina de ferro, armados apenas com o amor mútuo e com a caridade para com qualquer pessoa, sem distinções. A sua ação silenciosa, desde aqueles anos, contribuiu para a superação das barreiras ideológicas, sustentou o compromisso de reconstruir aquelas sociedade oprimidas e hoje anima numerosos projetos voltados ao bem comum.

No último mês de maio, no Brasil, realizou-se a Assembleia mundial da Economia de Comunhão, a 20 anos da intuição profética que Chiara teve quando, chegando em São Paulo e sobrevoando a cidade, viu os arranha-céus e a “coroa de espinhos” das favelas que a circundavam, e sentiu o impulso de fazer alguma coisa para mudar  o sistema de desenvolvimento, para buscar um novo caminho, que não fosse nem o capitalismo nem o comunismo. Hoje a Economia de Comunhão envolve mais de 800 empresas que livremente colocam em comum os lucros, para promover os pobres e formar empresários e economistas a uma nova práxis econômica, e é reconhecida e estudada como uma verdadeira doutrina econômica.

As variadas iniciativas nas quais o Movimento dos Focolares tem hoje a sua atuação, em todos os ângulos do planeta e em todos os campos da atividade humana, num certo sentido estavam profeticamente presentes naquele momento originário, quando Chiara Lubich e Igino Giordani se encontraram, aqui no Montecitorio.

A partir de então o Movimento colocou-se logo a serviço, inclusive da política. Naqueles anos atraiu muitos deputados e senadores – alguns dos quais foram mencionados na projeção precedente – e as escolhas feitas, como pudemos ouvir, foram corajosas.

Esta é a proposta atual do Movimento Político pela Unidade, desejado e fundado por Chiara Lubich em 1996, juntamente com alguns parlamentares e políticos de diversos níveis institucionais, que envolve – na Coreia, na Argentina e em outras nações – administradores locais, funcionários, estudiosos de política, e muitos jovens engajados nas escolas de participação.

Este é animado por um amor político que guia as opções, comportamentos, leis, ações diplomáticas, deixando perceber uma nova modalidade de trabalho, das assembleias administrativas, legislativas, até aos organismos internacionais.

Inspira-se no princípio da fraternidade, núcleo cardeal do pensamento político moderno. Como sabe-se, este esteve nas bases dos projetos políticos mais importantes da história  moderna e contemporânea. Como guia ideal, da Revolução Francesa (pensamos no trinômio liberdade, igualdade, fraternidade) à fundação do socialismo utópico, do marxismo ao nacionalismo patriótico. Foi, no entanto, interpretado de maneira não inclusiva, isto é, considerando a fraternidade como uma relação de valor que dizia respeito a alguém (uma categoria social, uma classe econômica, um povo), em antagonismo com qualquer outro.

Trata-se, portanto, de um princípio político ainda pouco explorado na sua dimensão universal, e é isso o que pretende fazer o Movimento Político pela Unidade: enunciar o princípio da fraternidade universal, a fim de que a política reencontre nele uma nova fundação, que a faça estar à altura dos tempos, capaz de desempenhar a sua função de construtora de paz, justiça, liberdade, para toda a comunidade humana. A fraternidade, alem do mais, ilumina o objetivo último da política, que é uma paz realizada até a unidade de toda a família humana: unidade nas menores comunidades políticas como no inteiro fórum internacional. Desse modo, o princípio da fraternidade universal encontrou uma medida no «amar a pátria alheia como a própria», expressão cunhada por Chiara Lubich e que desde os primeiros tempos constitui um paradigma de universalidade. É capaz de exprimir a vocação da política como amor dirigido a todos, indistintamente, porque cada pessoa e cada realidade social é “candidata à unidade” com a outra, e cada povo é chamado a concorrer para um mundo mais unido.

E hoje, nesta prestigiosa sede do Parlamento italiano, ao recordar estes que são alguns traços do Movimento Político pela Unidade, percebemos ainda a grande atualidade de um outro convite, dirigido por Chiara justamente aos parlamentares italianos, em dezembro de 2002, no Palácio São Macuto. Um convite, um paradoxo plausível, a estreitar entre todas as partes – superando qualquer diferença – um pacto de fraternidade pela Itália, porque o bem do país necessita da ação de todos.

«A fraternidade oferece possibilidades surpreendentes – disse ainda Chiara aos parlamentares – consente, por exemplo, compreender e assumir como próprio até mesmo o ponto de vista do outro, de forma que nenhum interesse, nenhuma exigência reste alheia; […] consente colocar juntas e valorizar experiências humanas que, de outra forma, ameaçam desencadear-se em conflitos insanáveis, como as feridas ainda abertas da questão meridional e as novas legítimas exigências do norte; […] consente ainda injetar novos princípios no trabalho político cotidiano, de modo que não se governe jamais contra alguém, ou sendo expressão apenas de uma parte do país».

A isso, e a muitos outros desafios, no campo político e na sociedade inteira, conduziu aquele encontro entre Chiara Lubich e Igino Giordani, um deputado que, de Montecitório, soube acolher aquele convite a dilatar a alma e a ação, para construir a unidade em todo o mundo.

Os nossos votos, o que almejamos, é que o este encontro nos impulsione a reforçar o compromisso comum de trabalhar hoje pela unidade do nosso país, e mais além. Obrigada».

Maria Voce

15 Junho 2011