19 setembro 2018

Uma nova estação


29 de junho de 1948
O destino da árvore frutífera dá um pouco a imagem do homem que frutifica na sua estação fecunda. Até quando floresce, ao redor da árvore há cantos e trinos, zéfiro e sol;

e quando amadurece suas maças, a natureza inteira, orgiástica, envolve-a de calor. Depois, os agricultores retiram-se aos refeitórios, aos tinelos e aos celeiros e, após algumas palpitações de vida e cores no outono, penetra o frio silêncio, sob o céu cinzento, donde as folhas, como últimas lágrimas, caem na terra seca. E assim acontece ao homem quando superou a idade de maior rendimento. Desilusões e amizades caem, como as folhas, e o silêncio sobem de todos os lados, a paisagem se entristece e ele permanece sempre a contemplar, mudo espectador, o avanço de sua própria ruína.
Da mesma forma, como naquele frio e naquela solidão, a árvore prepara a nova primavera, concentra calor e seiva, assim o homem pode fazer daquele afastamento invernal de amigos e de forças a concentração de um vigor pleno de uma nova existência: utilizar aquele abandono dos homens para aderir a Deus, preencher aquela perda de humanidade com a graça divina. E então, dentro do silêncio agigantado pela ingratidão e avareza, sobre a velhice descamada e fria, pode encher-se do calor de Deus, ascender interiormente enquanto declina externamente: dar aos homens um fruto que não se conta na economia, mas se calcula na teologia. No inverno do homem começa a primavera de Deus.

21 de junho de 1965
O tronco torna-se sempre mais desfolhado, nu. Desaparecendo as flores, cortados os frutos (quem os comeu?...), caíram às folhas, romperam-se os ramos. Humanamente, haveria lugar para o desespero.
Divinamente, ao invés, podemos ter esperança poIs que esta diminuição é uma diminuição do homem a fim de que Deus nele cresça: sempre há compensação — há quase a teandria[1] — mas à parte de Deus cresce anelando fazer-se tudo, até que chegue o dia em que não existas mais; existe Ele, e te tomas parte d’Ele, e do nada te fazes tudo.


2 de janeiro de 1960

Com o passar dos anos, os velhos, em muitos casos, retornam á religião ou se tornam mais religiosos. Esta evolução é chamada involução, este progresso, regresso, senilidade. No entanto, é um aviso instintivo da aproximação de Deus, ou melhor, da casa.

Da árvore caem as folhas, o tronco abre os ramos para o céu; recebe água, é envolta pela névoa, ferida pelos raios; olha para o alto, não mais iludida com a folhagem, não mais iludida com aquilo que passa, já habituada, prelibando o que permanece. A minha pessoa morada de Maria, situada na sua vontade, recolhe-se, sempre mais, à morada do amor Eterno, cuja obra-prima é a Mãe.



24 de agosto de 1960

Aparece nos jornais, com frequência, que algum velho — quase sempre aposentado — sobe ao sétimo andar e dali se jogam no vazio para pôr fim à vida. Ou, mais exatamente, à solidão que sofria, a doença dos velhos, criaturas arrancadas da massa para o isolamento, do rumor para o silêncio.

É uma solução lógica, embora errada.

A velhice é uma reviravolta critica, decisiva: a fase de preparação para o encontro com o Tudo, com o Eterno, com a Beleza: o encontro com o calor da juventude que não morre. É um período de evolução que chamam involução; de progresso que chamam regresso; de juventude do espírito que chamam senilidade.

O mal-estar físico e moral denota a inquietude diante da proximidade de Deus. Nessa idade avançada, a existência humana aparece como uma árvore no inverno. Ao cair das folhas, o tronco abre os ramos nus e secos para o céu e recebe água, nuvens e raios sem nenhum amparo. Mas, livre do ornamento do verde, olha direto para o alto, não mais iludido pela folhagem nem por aquilo que, florescendo de repente, cresce e morre.

E habitua-se a conversar com o céu, a sondar as nuvens, explorar as estrelas, percebendo, aos poucos, um mundo novo sem rumores e aparências.



23 de junho de 1958

Ao observar, cheio de pena, o cair das folhas (ilusão de fama, poder e amizade) da árvore da minha vida, neste outono que caminha para o inverno, percebo, melhor, que a solidão, sempre mais profunda e densa, que me rodeia é causada para efetuar um encontro amoroso mais intenso com Deus: a alma encontra finalmente tempo e conforto para estar com o Esposo. Chamam — esta — solidão, de aproximação da morte, mas é um encaminhamento para a vida. Agora, finalmente, posso deixar a minha alma escutar o Espírito Santo, conviver com os anjos e bem-aventurados, unir-se a Cristo, unir-se a Deus. E Deus é a vida. Antes, inúmeras distrações e interrupções impediam a passagem do espírito divino, que é a Vida; agora, a união, aos poucos, torna-se constante. Aprendo e preparo a vida do paraíso.

Sempre quis atingir Deus porque sempre tive fome de vida. No entanto, mesmo ao aproximar-me d’Ele, como válvulas, intercalava os meus estudos, as minhas amizades, os meus hábitos. Frequentemente comprazia-me neles, parava diante das criaturas e dos fantasmas, sacrificava o essencial ao acessório, o divino ao humano.





15 de novembro de 1957

Estou chegando ao outono da vida: os últimos frutos foram colhidos e consumidos, as últimas folhas levadas pelas ondas frias do vento. Bem sei que a juventude interior resiste fortificada pelas provações. A carência de afetos e contentamentos vindos dos homens a temperaram e quase a aguçaram, proa que avança rumo ao mistério. De tal maneira que a flor fecha-se ao anoitecer da vida para reabrir-se na eternidade.



6 de dezembro de 1957

Se a existência física é uma combustão, façamos do nosso corpo um turíbulo onde se versa, sem trégua, o incenso da oração. Assim, por um outro aspecto, é a união do humano e do divino, do corpo e do espírito; sempre uma projeção da unidade, do Homem-Deus. Todo ato de caridade derramado sobre aquelas brasas há de acender uma chama. Toda dor que nos for oferecida produzirá cinza e será uma consumação, como a chama do altar, se todo o amor, o sofrimento — o sofrimento transformado em amor

— for destinado para onde a gravitação o transporta: ao Amor Eterno. A química torna-se suporte da mística. Dá-se à natureza a possibilidade de libertar-se, abre-se a sua boca à oração. Também a matéria e as células foram criadas para voltar ao Criador.



26 de fevereiro de 1957

Têm razão quando comparam o ciclo da existência com o ciclo das estações. Ela é como a árvore que cresce, floresce e frutifica enquanto entre seus ramos, os pássaros fazem seus ninhos. Depois vem a má estação, os trabalhos e o tempo, e desfolha os ramos e os resseca: até que o divino podador os poda. Poda e reduz a planta ao essencial: a uma cruz.



15 de novembro de 1957

Caem as folhas e os frutos, e nas ervas secas do chão floresce outra primavera. Na solidão dilatada pelo próximo inverno, Deus aparece, aproxima-se, e com Ele, o relacionamento se torna mais íntimo e imediato. Na medida em que perdemos na economia humana, adquirimos na economia divina. As criaturas se distanciam para que eu me enlace ao Criador. Não encontro amor para encontrar o Amor.

A estação findará, findará também a ação com a reação dos homens, quando, finalmente, estiver com Deus. Nele não há mais história, que é um registro do tempo, quase uma crônica fúnebre. Na eternidade, a vida é pura e plena porque se desenvolve em unidade com Deus. E Deus está além do tempo com suas estações, frutos e folhas.

Vista assim, a existência é uma árvore que cresce para o céu a fim de florescer na eternidade. Estações e tragédias, desilusões e sofrimentos são podas. A árvore cresce sob uma amarga chuva (água e sol, o pranto) para mondar-se, até tornar-se pura haste elevada da terra ao céu.

A vida não é senão um processo de amadurecimento pela purificação que a dor traz. Quando amadurece, é Deus quem colhe o fruto, transplantando a árvore ao paraíso.



24 de junho de 1960

O amor é a linfa que faz a flor crescer. No homem, alimenta a liberdade; a vida no amor revela-se como um desenvolvimento na liberdade: processo de libertação. Somos de tal maneira ligados aos nossos limites, como galhos ao tronco, que quando estes aos poucos, vão sendo podados, parece-nos uma perda, mas na verdade é um ganho.

(Diário de Fogo Igino Giordani, 1980)



1.         Teandria, no seu sentido original, diz respeito à “natureza humano-divina de Jesus”: no texto:
             o “humano no divino”. (n.d.t.)

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