Queremos converter‑nos Senhor. Até hoje, vivemos
"fora", doravante, devemos viver "dentro", como Maria.
Porque, mesmo o viver "fora", voltado
para o próximo ou para as obras ‑ ainda que seja por amor a Deus se não for
corrigido por uma força espiritual que atrai a alma continuamente para o seu
íntimo, pode tornar-se motivo de divagação, com muito tagarelar inútil, com
"coisas santas" dadas aos "cães".
Viver "dentro", crescer interiormente,
desapegar‑se de tudo, não para permanecer suspenso entre o céu e a terra, mas
"enraizado" no Céu, fixo no coração de Cristo, através do Coração de
Maria, numa vivência trinitária, prenúncio da vida que virá.
Viver "dentro" e oferecer ao próximo
unicamente a seiva que jorra do Céu dentro de nós, a fim de o servirmos
realmente e não o escandalizarmos com a nossa tão pouca santidade.
Viver "dentro", como Maria, a
inigualável, a Mãe amada, a Rainha, a Guia que vence Satanás ancorada em Deus e
não através de atitudes exteriores tão distantes dela como a terra do céu.
Viver "'dentro", pregados na cruz por
nossas próprias mãos, para que Cristo continue, também através de nós, a obra
de reunificação de um mundo volúvel que sofre, que espera, que quer esquecer,
que tem medo, e do qual se compadece hoje o nosso coração como ontem se
compadeceu das multidões o de Jesus.
Viver "dentro", para arrastar o mundo
que vive apenas "fora", aos abismos dos mistérios do espírito, onde
nos elevamos, repousamos, recebemos conforto, ganhamos novas forças e reencontramos
alento para voltar à terra e continuar a batalha cristã até a morte.
Às vezes, levamos muito tempo para nos
desprendermos dos negócios, do mundo e das coisas, para
nos recolhermos e
nos concentrarmos em Deus; contudo, logo que o fazemos, não mais desejamos
voltar atrás, tão suave é para a alma a união com Deus.
Deus está dentro de nós em solidão e
não é possível encontrá‑lo sem que enfrentemos corajosamente, também nós, a
solidão.
Se Deus mostrasse a uma
alma todas as dores que lhe reservou durante a vida, ela morreria no impacto. 0
mesmo aconteceria, se Deus mostrasse todas as alegrias que a alma
experimentará na vida.
Deus sabe e dosa. A alma
não sabe, mas abandona‑se nas mãos de Deus, que a ama.
Se o silêncio do cimo
das montanhas, se a imensa e solitária amplidão do mar, se uma excursão entre o
céu azul e a branca rocha, se uma viagem de avião a dez mil metros, exercem uma
real atração nas pessoas espirituais porque as levam ao recolhimento espontâneo
e à oração, como se sentirão envolvidos pela onipresença de Deus aqueles que,
com a fé no coração, puderem afastar‑se desta terra e correr entre os espaços!
Deus! Primeiramente 0 escolhes
como o Tudo da tua vida, excluindo todo o resto que descobres fátuo e vão.
Depois, contemplas com os Seus olhos os homens e as coisas, o mundo e a
história, os acontecimentos grandes e pequenos... e 0 amas, presente na
natureza e nos séculos.
Finalmente 0 "sentes" no fundo do teu coração. E Aquele, cuja
existência aceitavas pela fé, manifestar-se‑á de um modo real, por mística e
tangível demonstração. E acreditas que Ele existe, porque Ele está realmente
no fundo da tua alma.
Caminhemos pelo mundo, encouraçados em nossa
interioridade onde vive Deus. Saiamos somente para servi‑Lo no irmão ou no
trabalho, tendo nas atitudes e no olhar a paz -
haurida no silêncio amoroso e infinito da Santíssima Trindade que
habita em nós ‑ e a luz ‑ que jorra como água inesgotável da Sabedoria eterna ‑
densa de alegria puríssima. Testemunhemos assim a
futilidade do mundo que nos circunda, para afirmarmos, com os fatos, a
existência de um outro mundo de maior valor, de maior importância e que há de
reinar.
É necessário que a nossa alma se recolha e se
encontre com Deus. Se não estiver fixada neste único centro é como um pião que
corre desgovernado, batendo de um lado e de outro. Centrada em Deus, cada uma
das suas ações adquire significado, cada uma de suas atitudes para com os
homens e as coisas se situa num plano sobrenatural. Caso contrário, tudo se
esvai e não se percebe mais o motivo da existência.
Não é verdade Senhor,
que toda a nossa vida seja dor.
Não é verdade, Senhor, que a sombra da cruz
amargure todos os dias de nossa existência. É muito mais verdadeiro dizer
que, para os que te amam, a dor representa uma grande parte, insubstituível;
mas não é a única coisa que encontramos ao seguir‑te, pois vemos sobretudo a
Ti, que és Amor, e transformas cada dor em encantamento. Assim a vida é vivida
com centuplicado ardor.
Quando o homem se inclina, adorando a Deus
presente no seu coração, não tem a sensação de estar se retraindo sobre si
mesmo ou diminuindo‑se, mas abre‑se para horizontes mais vastos do que os
contemplados pelos que voam pelo céu, mais amplos do que aqueles entre as
miríades de estrelas.
É a dimensão do espírito que supera qualquer
limite e mergulha a alma em abismos de amor, onde frequentemente se desfaz em
lágrimas porque o contato com Deus, a quem inadequadamente serve, lhe é mais
íntimo do que ela própria.
Se amares a Deus por longo tempo, e Ele te escavar
a alma com abismos como só Ele é capaz, sentirás que não é mais possível perdê‑Lo.
Se por acaso, a fim de servi‑Lo, tu deixas este colóquio direto, no primeiro
instante em que te encontrares só, Ele voltará e Tu lhe falarás e saberás que
Ele está presente, pois todo o teu ser clama por Ele só e, sem Ele, és como um
nada sem sentido.
Sem dúvida, Senhor, deves dominar o mais íntimo da
alma dos teus servos, pois que muitas vezes, quando eles se recolhem para
trabalhar, Tu os atrai para o mais íntimo do seu ser a fim de que
retifiquem a intenção, segundo a tua vontade e te ofereçam, qual incenso, tudo
o que fizerem.
Quando reencontramos na solidão o contato contigo,
reencontramos o contato com os homens e com as coisas, não como escravos mas
como filhos de Deus.
Alegrias e dores, consolações e angústias,
arrependimentos e ressurreições, permissões de Deus e luminosas vontades suas,
conquistas e perdas dolorosas, aprovação dos homens e difamações, lenta
edificação de obras para a glória de Deus e florescer de conversões, tudo,
ainda que no meio do joio de Satanás, semeado por toda parte, tem sempre, se
amamos a Deus, um só destino, um único motivo: levar‑nos à união com Deus.
Que sempre resplandeça no íntimo de nosso coração
e tudo viva em função de Ti, em torno de Ti. Depois, não importa onde, como, se
ou mas...
Senhor, faze com que vivamos e voltemos com
frequência, durante o dia escuro desta vida, ao outro Reino que está acima de
nós, dentro de nós e que existirá depois de nós: o Reino onde o teu Nome é
santificado, o Reino cujo advento, não será mais necessário pedir, após a
chegada de todos.
Ali vivem os Santos, os Bem‑aventurados, com a
Virgem e o teu divino Filho na Trindade. E lá podemos de vez em quando nos
retirar, a fim de trazermos para este mundo fátuo e vazio, órfão e solitário,
triste e cheio de melancolia, aquele amor indefinível e suavíssimo que tudo
anima, tudo penetra.
Senhor, toma a nossa vida de tal forma imbuída de
sobrenatural que, quando estivermos sós, caminhando, trabalhando ou estudando,
quem passar ao nosso lado sinta o teu perfume. E quando juntos, quem nos
encontrar sinta‑se fortemente atraído, a mergulhar no Reino de Deus, presente
no meio de nós.
Quando a hélice
de um avião gira vertiginosamente, não se consegue mais vê‑Ia. Quando uma alma
ama com intensidade, perde o seu peso humano e toma‑se
transparente.
Se, todavia, a hélice em
movimento é tocada pelo sol, reluz em todo o seu esplendor. Do mesmo modo a
alma que "vive". Em cada encontro com Deus transborda de Luz e canta
com Maria: “A minha alma glorifica o Senhor"'.
Às vezes, Senhor, existe
algo no íntimo dos corações dos teus filhos, que atrai mais fortemente que
inúmeras preferências naturais ou espirituais; algo mais puro que o ar do alto
das montanhas algo mais vivo que qualquer outra vida, mesmo plena, pois ela
parece loucura ou distração, diante da voz imperiosa que se ouve interiormente
com grande ressonância.
"Jamais colherei uma
flor," diz S. João da Cruz, para nos ensinar a não pararmos nas
consolações terrenas... Sim, "jamais colherei uma flor" Te repetem
estas almas, porque a flor das flores nasceu no fundo do pântano dos seus
corações, como um milagre divino.
Aqueles que Te amam com sinceridade,
não raro Te sentem, Senhor, no silêncio do seu quarto, no profundo do seu
coração, e esta sensação comove a alma como se cada vez atingisse o seu íntimo.
E Te agradecem por estares tão próximos deles, por seres tão plenamente
o seu Tudo: aquele que dá sentido ao viver e ao morrer.
Agradecem‑Te, mas muitas vezes não
sabem fazê‑lo nem dizê‑lo. Sabem apenas que Tu os amas e que eles Te amam e que
não existe algo mais suave aqui na terra que de longe ao menos lhe possa ser
comparável. 0 que sentem na alma, quando Tu apareces, é Paraíso e "se o
Paraíso é assim ‑dizem ‑ oh! como é esplêndido!”
Agradecem‑Te,
Senhor, pela vida inteira, por conduzi-los até aqui. E se exteriormente ainda
existem nuvens que poderiam ofuscar o seu paraíso antecipado, quando Tu Te
manifestas, tudo se toma remoto e distante: nada existe. Tu existes. Assim é.
Se não fecharmos as janelas da nossa alma com o recolhimento, Tu não
poderás, Senhor, entreter‑Te conosco, como o teu amor, às vezes, desejaria.
Nós somos tão mesquinhos que, muitas vezes, para não fazermos o menor
esforço, reduzimos a nossa alma a uma praça, onde todas as coisas do mundo
surgem, entram e conversam. Deste modo, Tu, que nos ensinaste que não é bom dar
as coisas santas aos cães, Tu que és o Santo, não Te podes dar a nós, embora
muitas vezes o queiras, embora o nosso esforço, por pouco que seja, fosse
imensamente recompensado pelo teu amor. Pois ele nos confortaria e sustentaria,
dando‑nos a força para viver uma vida mais real no meio do permanente outono do
mundo.
Pode‑se chegar a um ponto em que uma palavra diz à
alma todo um conteúdo divino, tão pleno, tão novo, que basta a própria
palavra para exprimi‑lo, embora se perceba que ela não é suficiente para
comunicá‑lo aos outros. Por exemplo: "Jesus", "Maria".
O grão de trigo desenvolve a sua vida debaixo da
terra, coberto por uma camada de neve. De maneira análoga, a alma amadurece a
sua união com Deus, isolada por uma camada de abandono.