27 abril 2021

O carisma da unidade e a pedagogia


Washington, 10 de novembro de 2000
(Extraído da aula ministrada em 10 de novembro de 2000 na Catholic University of America, de Washington, por ocasião da outorga do doutorado honoris causa em pedagogia.)

[…]

O nosso Movimento pode ser visto também sob os aspectos teológico, filosófico, cultural, social, econômico, educativo e artístico, bem como sob o aspecto ecumênico ou inter-religioso. Tentarei agora expor algumas consequências pedagógicas dos pontos mais significativos de sua espiritualidade.

De fato, o nosso Movimento e a nossa história podem ser vistos como um grande e extraordinário evento educativo. Nele estão presentes todos os fatores da educação e também é evidente a presença de uma teoria da educação, de uma pedagogia bem delineada que fundamenta a nossa ação educativa.

Mas – perguntemo-nos logo – o que é a educação?

Ela pode ser definida como o itinerário que o educando (indivíduo ou comunidade) percorre, com a ajuda do educador ou dos educadores, na direção de um dever ser, de um objetivo considerado válido para o homem e para a humanidade.

Quais são os elementos característicos da nossa pedagogia ligados aos principais pontos da espiritualidade que vivemos?

Se considerarmos o primeiro ponto: a revelação – passe a palavra – de Deus como Amor, constatamos que, na nossa história, desde o seu início, sempre esteve presente um único educador, o Educador por excelência, precisamente Ele: Deus-Amor, Deus Pai. Foi Ele que tomou a iniciativa em relação a nós, que nos acompanhou, que nos renovou regenerou – com a intencionalidade que orienta o verdadeiro educador – ao longo de um itinerário riquíssimo de formação pessoal e comunitária.

Foi Ele que nos fez recuperar (a nós e a muitos) o sentido da Paternidade Maior: uma descoberta de alcance enorme se pensarmos que uma determinada cultura tenta afirmar – nos planos teórico e prático – que “Deus está morto”. Esse eclipse de Deus Pai favoreceu também um eclipse da figura do pai de família, o qual perdeu a autoridade no campo das relações humanas e educacionais, favoreceu um relativismo moral, uma ausência de regras na vida individual, nas relações interpessoais e sociais, muitas vezes com consequências graves, como formas de violência, etc., praticamente dando razão a Dostoiévski, quando afirma que «matar Deus é o suicídio mais horrível» e também «se Deus não existe, então tudo é permitido». Nós tivemos a graça de conhecer Deus. Ele, que é Amor, não é certamente um juiz distante, um inimigo ciumento que aniquila o homem com a sua potência ou que não se preocupa com ele. Pelo contrário, é um educador que reconhece o homem em sua identidade única e irrepetível, que o exalta. Ele ama o homem e por isso é também exigente. Como verdadeiro educador, pede e educa para a responsabilidade, para o compromisso. 

Deus é Amor, e por isso nos libertou da escravidão maior, reabrindo-nos as portas de sua Casa. E sabemos o preço que seu Filho pagou por esse resgate. Nenhum educador jamais considerou tanto o homem, quanto um Deus que morreu por ele. Deus-Amor elevou o homem, cada homem, à dignidade altíssima de filho e herdeiro. Cada homem!

Era justamente na constatação de que todos somos filhos do mesmo Pai que se baseava a ideia-forte de Comenius, grande representante da pedagogia moderna. Ele disse: é preciso “ensinar tudo a todos”.

Outro ponto fundamental da nossa espiritualidade é a Palavra de Deus.

Foi dito «ensinar tudo a todos», mas para tanto é necessário usar – dizia o próprio Comenius – a regra pedagógica da gradação. Pensando bem, o Pai sugeriu essa gradação a nós, focolarinas, quando, desde os primeiros dias, nos impeliu a viver a sua Palavra, escolhendo uma frase por vez do Evangelho, para ser posta em prática durante um mês, na vida de cada dia. Mas isto logo nos deu “Tudo”, porque em cada Palavra está presente Jesus todo; ao mesmo tempo, como crianças nutridas por sua Palavra, dela nos revestimos cada vez mais, crescendo assim como adultos na fé e na vida.

Com esta técnica pedagógica muito simples da gradação e da plenitude, a luz do nosso Ideal se difundiu e continua a difundir-se muito além de nós, como experiência espiritual e educacional forte e em contínua expansão.

A unicidade da Palavra de Deus é que ela é Palavra de Vida, que se torna experiência num mundo, inclusive o pedagógico, muitas vezes poluído de verbalismo. 

Experimentamos a força educacional – alternativa e contestatória – desta Palavra sempre viva e sempre nova. Pouco a pouco, impressa em nossa vida, ela lhe conferiu – desmedida tarefa, típica da educação – uma unidade existencial, favorecendo a superação da fragmentação-esfacelamento que o homem muitas vezes sente na sua relação consigo mesmo, com o outro, com a sociedade e com Deus, fazendo emergir ao mesmo tempo, a unicidade, a originalidade de cada um.

E por esta unidade existencial entre Palavra e Vida, entre dizer e fazer, que a nossa experiência é digna de crédito, convincente, para muita gente; provoca mudanças profundas na existência pessoal e por isso aciona um verdadeiro processo educacional em muitas pessoas.

Outro ponto é a vontade de Deus.

A fidelidade à Palavra de Deus nos acostumou também a “perder a nossa má vontade”, aquela que ainda nos une às estreitas modalidades existenciais do eu autocentrado, bem como a seguir a vontade de Deus, que nos leva ao contínuo autotranscender-nos, a um superar-nos para o tu que nos enriquece e liberta.

Na educação moral da pessoa, normalmente passamos de forma gradativa da necessária fase inicial de dependência, para a moralidade autônoma. Também em nossa experiência, percebíamos a passagem educacional da adesão inicial para uma outra vontade, para a sua Lei (que se manifesta de várias maneiras) – Lei, à qual nos  agarramos qual criança que se confia totalmente à orientação do adulto –, para a forte percepção de liberdade pela interiorização da própria Lei, quando sentimos que ela se tornou a nossa lei, quando ela está tão gravada em nós a ponto de nos fazer sentir adultos exatamente porque capazes de dizer: «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20).

Outro ponto ainda, Jesus quando grita: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Mt 27,46; Mc 15,34). Jesus Abandonado é o nosso segredo, a nossa ideia-chave, também para a educação. Ele nos indica o limite sem limites da nossa ação pedagógica, nos mostra até que ponto e com que intensidade ela deve atuar.

Quem é Jesus Abandonado, por quem decidimos ter um “amor preferencial”? Ele é a figura do ignorante, pois pergunta “por quê?” (a sua é a ignorância mais trágica, a pergunta mais dramática); do desfavorecido, do desadaptado, do deficiente, do não-amado, do desprezado, do marginalizado, de todas aquelas realidades e experiências humanas e sociais que exigem, mais do que outras, uma urgente e especial necessidade de educação. Jesus Abandonado é o paradigma de quem, carente de tudo, precisa de alguém que lhe dê tudo e por Ele faça tudo. Por isso, é também a ideia-limite, o parâmetro do educando, que requer a responsabilidade do educador. Ele nos mostra assim o limite sem limites de tal necessidade e, ao mesmo tempo, o limite sem limites de nossa responsabilidade em ajudar e em educar. 

Mas Jesus Abandonado, que superou a sua dor infinita completando: « Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc 23,46), ensina-nos também a ver a dificuldade, o obstáculo, a provação, o empenho, o erro, o fracasso, o sofrimento, como algo a ser enfrentado, amado, superado. Nós, homens, em qualquer campo de atividade, geralmente tentamos evitar tais experiências com todos os meios. Inclusive no campo educacional, de muitas maneiras, com tipos de hiper proteção, a tendência é  preservar as crianças de qualquer dificuldade, habituando-as a ver a vida como uma estrada em descida, fácil, cômoda. Na realidade, nós as deixamos inseguras perante as inevitáveis provações da vida e, em particular, as tornamos passivas e relutantes com relação às responsabilidades que cada ser humano deve assumir diante de si mesmo, do próximo e da sociedade.

Para nós, porém, graças justamente à escolha de Jesus Abandonado, cada dificuldade deve ser amada e encarada. A educação para o difícil, como empenho que envolve o educando e o educador é, portanto, outro ponto fundamental da nossa pedagogia.

Há também outros dois pontos que quero considerar: a unidade e Jesus em nosso meio.

Aqui poderemos nos perguntar: qual a finalidade deste processo educacional?

A nossa finalidade é a mesma de Jesus, que poderíamos definir como a sua finalidade educacional: «que todos sejam um». Portanto, a unidade, profunda e sincera com Deus e entre os homens. 

A unidade é uma aspiração muito atual. Apesar das inúmeras tensões do mundo contemporâneo, o nosso planeta, quase que paradoxalmente, tende à unidade: a unidade é um sinal e uma necessidade dos tempos.

Todavia, este impulso íntimo – como no e-ducere (extrair, fazer sair) da educação –, deve vir à tona positivamente. Por isso, é imprescindível, uma ação educacional coerente com as exigências da unidade, em todos os planos do agir humano, para fazer do nosso mundo não uma Babel sem alma, mas uma experiência de Emaús, de Deus conosco, capaz de abraçar a humanidade inteira. Parece um projeto utópico, mas toda pedagogia autêntica é portadora de uma força utópica, a ser entendida como  ideia reguladora para estabelecer entre nós um território que ainda não existe, mas  deveria existir. Neste enfoque, a educação é vista como meio para nos aproximar do objetivo utópico.

Em nossa pedagogia, pela qual o plano espiritual e o humano se entrelaçam e se unificam (pela Encarnação), a Utopia não é nem sonho, nem ilusão, muito menos meta inacessível. Ela está entre nós e percebemos os seus frutos, quando atualizamos o «Onde dois ou mais estiverem reunidos no meu nome, ali estou eu no meio deles». Isto faz com que a finalidade, a meta mais elevada, seja realidade.

Aqui experimentamos a plenitude da vida de Deus que Jesus nos doou, uma relação trinitária, a socialidade mais autêntica, em que se concretiza uma síntese maravilhosa entre a instância pedagógica da educação do indivíduo e a instância pedagógica da construção da comunidade. Acreditamos que em nossa experiência de espiritualidade comunitária trinitária se realizem plenamente as ideias defendidas por muitos expoentes da história da pedagogia que, embora partindo muitas vezes de premissas diferentes, insistiram na importância da educação na construção da sociedade fundada em relacionamentos autenticamente democráticos. Pensamos, só para citar um nome, na grande contribuição que os Estados Unidos oferecem ao mundo pedagógico, por meio de John Dewey. Encontramos muitas consonâncias também com a recente “pedagogia de comunidade”, em que se proclama a necessidade de conjugar a promoção do indivíduo e a promoção da comunidade.

Naturalmente, a nossa experiência de vida comunitária se baseia no convite de Jesus: «Amai-vos como eu vos amei… Que todos sejam um», motivação esta de natureza religiosa, mas de efeitos extraordinários no plano educacional. 

A finalidade atribuída desde sempre à educação (formar o homem, a sua autonomia), se desenvolve, quase paradoxalmente, em formar o homem-relação, que para nós é o homem ícone da Trindade, capaz de autotranscender-se continuamente na realidade de Jesus em nosso meio. É através dessa práxis espiritual e educacional do amor recíproco, do consumar-se em um – práxis que é seguida por todos os membros do Movimento, chamados a viver a experiência comunitária em pequenos grupos –, que nós agimos para a finalidade das finalidades, expressa na oração-testamento de Jesus: «Que todos sejam um»: a utopia-realidade para a qual nós, como instrumentos por Ele guiados, pretendemos dedicar a nossa vida.

É por meio de uma educação séria que, como indivíduos e como comunidades, podemos nos tornar capazes de colaboração, de diálogo, de encontro com outras pessoas, com outros Movimentos etc. É, enfim, por meio de uma educação séria que – com a graça de Deus – podemos almejar a santidade pessoal e comunitária.

Maria é o exemplo de como viver de maneira excelsa os pontos pedagógicos aos quais fiz referência.

E naturalmente Jesus, que soube percorrer este itinerário pedagógico, este vaivém entre o abandono e a Trindade, e que, na sua experiência terrena, viveu com intensidade excelsa a relação interpessoal, pondo em prática a empatia, a aceitação, a esperança, a luta educacional, a vida de unidade com o Pai, e “com os seus”. Ele é o testemunho mais autêntico e mais exigente do que significa ser educador.

Personalidades presentes, prezados amigos, espero que essa breve mensagem tenha sido suficiente para explicar a experiência pedagógica que emerge do nosso Movimento e possa também demonstrar a minha grande alegria e honra por este diploma em pedagogia. 

Obrigada pela atenção dispensada. Que Jesus Mestre forme em todos nós verdadeiros e eficazes educadores. 

Chiara Lubich

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