No
brusco despertar de nos encontrarmos – por assim dizer – outra vez na terra, só
uma pessoa nos deu forças para continuar vivendo: Jesus Abandonado, presente no
mundo que devíamos amar, esse mundo que assim é, justamente porque não é Céu.
            Numa
segunda escolha, mais consciente, mais lúcida, d’Aquele que nos chamara para
segui-lo, brotou de minha alma a notória decisão:
            Tenho
um só Esposo na terra:  Jesus  Abandonado. 
Não tenho outro Deus 
além  d’Ele. 
N’Ele está todo o paraíso com a Trindade e toda a terra com a 
humanidade.
Por isso, o seu é meu e nada mais.
Sua é a Dor universal e, portanto,
minha.
Irei pelo mundo à sua procura em
cada instante da minha vida. 
O que me faz sofrer é meu.
Minha, a dor que me perpassa no
presente. Minha, a dor de quem está ao 
Meu lado  (ela é o meu Jesus).  Meu, 
tudo  aquilo  que 
não é paz, gáudio, 
belo, amável, sereno...  Numa palavra: aquilo que não é paraíso.   Pois eu 
também tenho o meu paraíso,  mas ele está no coração do meu Esposo. 
Outros paraísos não conheço. Assim
será pelos anos que me restam: 
sedenta de dores, de angustias, de
desesperos, de melancolias, de 
desapegos, de exílio, de abandonos,
de dilacerações, de...  tudo aquilo que 
é Ele, e Ele, é o Pecado, o
Inferno.
Assim, dessecarei a água da
tribulação em muitos corações próximos e 
– 
pela comunhão com meu Esposo
onipotente – distantes.
Passarei como fogo que devora tudo
o que há de ruir e deixar em pé só a 
Verdade. 
Mas é preciso ser como Ele, ser Ele
no momento presente da vida.
Escrevi que “Ele é o Pecado, o
Inferno”[1].
Pavel Evdokimov diz: “O Espírito
Santo não une mais o Filho ao Pai, e o Filho constata o rompimento, o abandono;
é a solidão no âmago da Trindade, o sofrimento de Deus. O inferno de Deus... “
(Evdokimov, 1969, p. 109).
Para Hans Urs von Balthasar, Jesus
Abandonado é e não é o inferno:
A treva do estado pecaminoso é
certamente experimentada por Jesus de 
um modo que não pode ser idêntico à
que os pecadores (que odeiam Deus)
 teriam de experimentar [...], no entanto, é
mais profundo e mais obscura do 
que esta, porque se passa
internamente na profundidade da relação das 
hipóstases divinas, inimaginável a
toda criatura.
Portanto, pode-se igualmente bem
afirmar que o abandono de Deus em 
Jesus é o contrario do Inferno, e
que é exatamente o inferno (cf. Lutero, 
Calvino), até mesmo a sua extrema
intensidade. (Balthasar, 1986, p.313) 
[1]  O
teólogo ortodoxo Olivier Clément também escreve: “Através de suas humilhação,
de sua Paixão, de sua morte de maldito, o Cristo deixa entrar em si todo o
inferno, toda a morte da condição decaída, até a acusação decaída, até a
acusação terrível do ateísmo: ¢Deus meu, Deus meu porque me abandonaste?¢” (Clément, 1990, p. 147). 
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