07 junho 2019

A fonte secreta

Do discurso: “A família é o futuro”
No congresso da Fundação Suíça para a Família
Lucerna (Suíça), 16 de maio de 1999


[…]
Diante do grande mistério da dor, ficamos como que desorientados.
Existe na Bíblia um ápice de dor, expresso através de um "por quê" gritado ao Céu. O evangelista Mateus o menciona, narrando a morte de Jesus: "Às três horas Jesus grita em alta voz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?'"  1.
Cristo chegou àquele momento passando por uma gama de sofrimentos devastadores: o medo angustiante, a traição e o abandono dos seus, um processo injusto e maquinado, a tortura, a humilhação, a condenação à cruz, pena capital reservada aos escravos e que talvez nós hoje não consigamos avaliar na sua crueldade destruidora da pessoa e da sua memória.
No fim, aquele grito inesperado e que deixa entrever o drama do Homem-Deus, "por que me abandonaste?". É o ápice das suas dores, é a sua paixão interior, é a sua noite mais escura. Ele, que tinha dito: "Eu e o Pai somos uma coisa só" vive a trágica experiência da falta de unidade, da separação de Deus. E isso porque, por amor do homem, tomou sobre si todo o negativo, todo o pecado da humanidade.
Naquele abandono, sinal último e maior do seu amor, Cristo atinge a extrema anulação de si mesmo e reabre aos homens o caminho da unidade com Deus e entre eles. Naquele "por quê?", que ficou para Ele sem resposta, todo grito do homem encontra resposta. Não é semelhante a ele o angustiado, o só, o fracassado, o condenado? Não é uma imagem Dele cada divisão familiar, entre grupos e entre povos?
Não é a figura de Jesus abandonado quem perde, por assim dizer, o sentido de Deus e de seu desígnio sobre a humanidade, ou quem não acredita mais no amor e aceita em seu lugar qualquer substituto? Não existe tragédia humana nem fracasso familiar que não estejam contidos na escuridão do Homem-Deus. Com a morte Ele já pagou tudo; assinou um cheque em branco, capaz de conter a dor e o pecado da humanidade que existiu, que existe e que existirá.
Com essa tremenda experiência, quase como grão de trigo divino que apodrece e morre para nos restituir a vida, ele nos revela inclusive a verdade do maior amor: ser capazes de dar tudo de nós, de nos tornarmos nada pelos outros. Escreve von Balthasar: "O sinal de Deus que anula a si mesmo, fazendo-se  homem e morrendo no mais completo abandono, explica porque é que Deus aceitou (...) tudo isso: correspondia à sua natureza manifestar-se como amor incomensurável". 2
Por meio daquele vazio, daquele nada, voltou a jorrar a graça, a vida de Deus ao homem. Cristo refez a unidade entre Deus e a Criação, recompôs o desígnio, fez homens novos e, por conseguinte, famílias também novas.
O grande evento do sofrimento e do abandono do Homem-Deus pode, portanto, tornar-se o ponto de referência e a fonte secreta capaz de transformar a morte em ressurreição, os limites em ocasiões para amar, as crises familiares em etapas de crescimento. Como? Se olharmos com olhos somente humanos o sofrimento, as possibilidades são duas: ou vamos terminar numa análise sem saída, porque a dor e o amor fazem parte do mistério da vida humana; ou então procuramos remover este empecilho incômodo, que é o sofrimento, fugindo para outras direções. Mas se acreditarmos que por trás da trama da existência está Deus com o seu amor e se, fortalecidos por esta fé, percebermos nos pequenos e grandes sofrimentos do dia a dia, nossos e dos outros, um aspecto da dor de Cristo crucificado e abandonado, uma participação na dor que redimiu o mundo, será possível compreendermos o significado e a perspectiva até mesmo das situações mais absurdas.
Diante de qualquer sofrimento, grande ou pequeno, diante das contradições e dos problemas insolúveis, experimentemos penetrar em nós mesmos e olhar de frente o absurdo, a injustiça, a dor inocente, a humilhação, a alienação, o desespero...
Reconheceremos neles um dos tantos semblantes do Homem das Dores. É o encontro com Ele, que de "Pessoa Divina" se tornou indivíduo sem relacionamentos; com Ele, "o Deus do homem contemporâneo", que transforma o nada em ser, a dor em amor. Será o nosso "sim", o nosso gesto de amor e de acolhimento a Ele que começará a despedaçar o nosso individualismo, fazendo-nos "homens novos", capazes de curar e revitalizar, com o amor, as situações mais desesperadoras.

1 Mt 27,46. 
2 Cf H.U. VON BALTHASAR, Solo l’amore è credibile, 1991, p.143

Um comentário:

Jose Benedito A. Gomes disse...

Obrigado, pela confortante meditação desta manhã!1