22 março 2019

Viver dentro

Queremos converter‑nos Senhor. Até hoje, vivemos "fora", doravante, devemos viver "dentro", como Maria.
Porque, mesmo o viver "fora", voltado para o próximo ou para as obras ‑ ainda que seja por amor a Deus se não for corrigido por uma força espiritual que atrai a alma continuamente para o seu íntimo, pode tornar-se motivo de divagação, com muito tagarelar inútil, com "coisas santas" dadas aos "cães".
Viver "dentro", crescer interiormente, desapegar‑se de tudo, não para permanecer suspenso entre o céu e a terra, mas "enraizado" no Céu, fixo no coração de Cristo, através do Coração de Maria, numa vivência trinitária, prenúncio da vida que virá.
Viver "dentro" e oferecer ao próximo unicamente a seiva que jorra do Céu dentro de nós, a fim de o servirmos realmente e não o escandalizarmos com a nossa tão pouca santidade.
Viver "dentro", como Maria, a inigualável, a Mãe amada, a Rainha, a Guia que vence Satanás ancorada em Deus e não através de atitudes exteriores tão distantes dela como a terra do céu.
Viver "'dentro", pregados na cruz por nossas próprias mãos, para que Cristo continue, também através de nós, a obra de reunificação de um mundo volúvel que sofre, que espera, que quer esquecer, que tem medo, e do qual se compadece hoje o nosso coração como ontem se compadeceu das multidões o de Jesus.
Viver "dentro", para arrastar o mundo que vive apenas "fora", aos abismos dos mistérios do espírito, onde nos elevamos, repousamos, recebemos conforto, ganhamos novas forças e reencontramos alento para voltar à terra e continuar a batalha cristã até a morte.
Às vezes, levamos muito tempo para nos desprendermos dos negócios, do mundo e das coisas, para
nos recolhermos e nos concentrarmos em Deus; contudo, logo que o fazemos, não mais desejamos voltar atrás, tão suave é para a alma a união com Deus.
Deus está dentro de nós em solidão e não é possível encontrá‑lo sem que enfrentemos corajosamente, tam­bém nós, a solidão.                               
            Se Deus mostrasse a uma alma todas as dores que lhe reservou durante a vida, ela morreria no impacto. 0 mesmo aconteceria, se Deus mostrasse todas as ale­grias que a alma experimentará na vida.              Deus sabe e dosa. A alma não sabe, mas abandona‑se nas mãos de Deus, que a ama.
Se o silêncio do cimo das montanhas, se a imensa e solitária amplidão do mar, se uma excursão entre o céu azul e a branca rocha, se uma viagem de avião a dez mil metros, exercem uma real atração nas pessoas espirituais porque as levam ao recolhimento espontâ­neo e à oração, como se sentirão envolvidos pela oni­presença de Deus aqueles que, com a fé no coração, puderem afastar‑se desta terra e correr entre os espa­ços!                    
Deus!  Primeiramente 0 escolhes como o Tudo da tua vida, excluindo todo o resto que descobres fátuo e vão. Depois, contemplas com os Seus olhos os homens e as coisas, o mundo e a história, os acontecimentos grandes e pequenos... e 0 amas, presente na natureza e nos séculos.
Finalmente 0 "sentes" no fundo do teu coração. E Aquele, cuja existência aceitavas pela fé, manifestar-se‑á de um modo real, por mística e tangível demonstração. E acreditas que Ele existe, porque Ele está realmente no fundo da tua alma.
Caminhemos pelo mundo, encouraçados em nossa interioridade onde vive Deus. Saiamos somente para servi‑Lo no irmão ou no trabalho, tendo nas atitudes e no olhar a paz -  haurida no silêncio amoroso e infini­to da Santíssima Trindade que habita em nós ‑ e a luz ‑ que jorra como água inesgotável da Sabedoria eterna ‑ densa de alegria puríssima. Testemunhemos assim a
futilidade do mundo que nos circunda, para afirmar­mos, com os fatos, a existência de um outro mundo de maior valor, de maior importância e que há de rei­nar.
É necessário que a nossa alma se recolha e se encontre com Deus. Se não estiver fixada neste único centro é como um pião que corre desgovernado, batendo de um lado e de outro. Centrada em Deus, cada uma das suas ações adquire significado, cada uma de suas atitudes para com os homens e as coisas se situa num plano sobrenatural. Caso contrário, tudo se esvai e não se percebe mais o motivo da existência.
Não é verdade Senhor, que toda a nossa vida seja dor.
Não é verdade, Senhor, que a sombra da cruz amargure todos os dias de nossa existência. É muito mais verdadeiro dizer que, para os que te amam, a dor representa uma grande parte, insubstituível; mas não é a única coisa que encontramos ao seguir‑te, pois vemos sobretudo a Ti, que és Amor, e transformas cada dor em encantamento. Assim a vida é vivida com centuplicado ardor.
Quando o homem se inclina, adorando a Deus presente no seu coração, não tem a sensação de estar se retraindo sobre si mesmo ou diminuindo‑se, mas abre‑se para horizontes mais vastos do que os contemplados pelos que voam pelo céu, mais amplos do que aqueles entre as miríades de estrelas.
É a dimensão do espírito que supera qualquer limite e mergulha a alma em abismos de amor, onde frequentemente se desfaz em lágrimas porque o contato com Deus, a quem inadequadamente serve, lhe é mais íntimo do que ela própria.
Se amares a Deus por longo tempo, e Ele te escavar a alma com abismos como só Ele é capaz, sentirás que não é mais possível perdê‑Lo. Se por acaso, a fim de servi‑Lo, tu deixas este colóquio direto, no primeiro instante em que te encontrares só, Ele voltará e Tu lhe falarás e saberás que Ele está presente, pois todo o teu ser clama por Ele só e, sem Ele, és como um nada sem sentido.
Sem dúvida, Senhor, deves dominar o mais íntimo da alma dos teus servos, pois que muitas vezes, quando eles se recolhem para trabalhar, Tu os atrai para o mais íntimo do seu ser a fim de que retifiquem a intenção, segundo a tua vontade e te ofereçam, qual incenso, tudo o que fizerem.
Quando reencontramos na solidão o contato contigo, reencontramos o contato com os homens e com as coisas, não como escravos mas como filhos de Deus.
Alegrias e dores, consolações e angústias, arrependimentos e ressurreições, permissões de Deus e luminosas vontades suas, conquistas e perdas dolorosas, aprovação dos homens e difamações, lenta edificação de obras para a glória de Deus e florescer de conversões, tudo, ainda que no meio do joio de Satanás, semeado por toda parte, tem sempre, se amamos a Deus, um só destino, um único motivo: levar‑nos à união com Deus.
Que sempre resplandeça no íntimo de nosso coração e tudo viva em função de Ti, em torno de Ti. Depois, não importa onde, como, se ou mas...
Senhor, faze com que vivamos e voltemos com frequência, durante o dia escuro desta vida, ao outro Reino que está acima de nós, dentro de nós e que existirá depois de nós: o Reino onde o teu Nome é santificado, o Reino cujo advento, não será mais necessário pedir, após a chegada de todos.
Ali vivem os Santos, os Bem‑aventurados, com a Virgem e o teu divino Filho na Trindade. E lá podemos de vez em quando nos retirar, a fim de trazermos para este mundo fátuo e vazio, órfão e solitário, triste e cheio de melancolia, aquele amor indefinível e suavíssimo que tudo anima, tudo penetra.
Senhor, toma a nossa vida de tal forma imbuída de sobrenatural que, quando estivermos sós, caminhando, trabalhando ou estudando, quem passar ao nosso lado sinta o teu perfume. E quando juntos, quem nos encontrar sinta‑se fortemente atraído, a mergulhar no Reino de Deus, presente no meio de nós.
Quando a hélice de um avião gira vertiginosamente, não se consegue mais vê‑Ia. Quando uma alma
ama com intensidade, perde o seu peso humano e toma‑se transparente.
Se, todavia, a hélice em movimento é tocada pelo sol, reluz em todo o seu esplendor. Do mesmo modo a alma que "vive". Em cada encontro com Deus transborda de Luz e canta com Maria: “A minha alma glorifica o Senhor"'.
Às vezes, Senhor, existe algo no íntimo dos corações dos teus filhos, que atrai mais fortemente que inúmeras preferências naturais ou espirituais; algo mais puro que o ar do alto das montanhas algo mais vivo que qualquer outra vida, mesmo plena, pois ela parece loucura ou distração, diante da voz imperiosa que se ouve interiormente com grande ressonância.
"Jamais colherei uma flor," diz S. João da Cruz, para nos ensinar a não pararmos nas consolações terrenas... Sim, "jamais colherei uma flor" Te repetem estas almas, porque a flor das flores nasceu no fundo do pântano dos seus corações, como um milagre divino.
Aqueles que Te amam com sinceridade, não raro Te sentem, Senhor, no silêncio do seu quarto, no profundo do seu coração, e esta sensação comove a alma como se cada vez atingisse o seu íntimo.
E Te agradecem por estares tão próximos deles, por seres tão plenamente o seu Tudo: aquele que dá sentido ao viver e ao morrer.
Agradecem‑Te, mas muitas vezes não sabem fazê‑lo nem dizê‑lo. Sabem apenas que Tu os amas e que eles Te amam e que não existe algo mais suave aqui na terra que de longe ao menos lhe possa ser comparável. 0 que sentem na alma, quando Tu apareces, é Paraíso e "se o Paraíso é assim ‑dizem ‑ oh! como é esplêndido!”
Agradecem‑Te, Senhor, pela vida inteira, por conduzi­-los até aqui. E se exteriormente ainda existem nuvens que poderiam ofuscar o seu paraíso antecipado, quan­do Tu Te manifestas, tudo se toma remoto e distante: nada existe. Tu existes. Assim é.
Se não fecharmos as janelas da nossa alma com o recolhimento, Tu não poderás, Senhor, entreter‑Te conosco, como o teu amor, às vezes, desejaria.
Nós somos tão mesquinhos que, muitas vezes, para não fazermos o menor esforço, reduzimos a nossa alma a uma praça, onde todas as coisas do mundo surgem, entram e conversam. Deste modo, Tu, que nos ensinaste que não é bom dar as coisas santas aos cães, Tu que és o Santo, não Te podes dar a nós, embora muitas vezes o queiras, embora o nosso esforço, por pouco que seja, fosse imensamente recompensado pelo teu amor. Pois ele nos confortaria e sustentaria, dando‑nos a força para viver uma vida mais real no meio do permanente outono do mundo.
Pode‑se chegar a um ponto em que uma palavra diz à alma todo um conteúdo divino, tão pleno, tão novo, que basta a própria palavra para exprimi‑lo, embora se perceba que ela não é suficiente para comunicá‑lo aos outros. Por exemplo: "Jesus", "Maria".
O grão de trigo desenvolve a sua vida debaixo da terra, coberto por uma camada de neve. De maneira análoga, a alma amadurece a sua união com Deus, isolada por uma camada de abandono.
 

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