26 março 2019

A palavra gera Cristo


E agora podemos nos perguntar: como conseguimos penetrar na palavra de Deus e compreendê‑la a ponto de apresentá‑la nova e portadora de uma força vital e revolucionária?

Sem dúvida ‑ agora podemos dizê‑lo ‑ foi em virtude de uma graça especial, graça que ensinava a colocar e a viver em profundidade a presença de Cristo entre as almas.

            O Senhor agiu da seguinte maneira: com a sua pedagogia, de início nos indicou algumas palavras que podem parecer mais fáceis. Todavia, ele tinha um motivo bem determinado para escolher tais palavras. Em geral eram as que diziam respeito ao amor: “Ama ao próximo como a ti mesmo”, “amai‑vos uns aos outros”, “amai o inimigo”, “amai...”; sempre o amor.

Só mais tarde compreendemos o motivo desta escolha: quem ama, adquire a luz, porque o fruto do amor é a iluminação interior.

E tem mais: o amor que Deus coloca dentro da nossa alma é sobrenatural, faz participar o nosso amor do próprio amor de Deus; portanto, é recíproco por sua própria natureza. Na reciprocidade do amor, acontecia que o Senhor, aos poucos, nos acostumava a acolher a sua presença entre nós. E esta presença influía na compreensão da sua palavra. Era ele o nosso Mestre, que nos ensinava como deviam ser entendidas as suas palavras. Era uma espécie de exegese, feita não por um mestre de teologia, mas pelo próprio Cristo.

De fato, diz Santo Anselmo, Doutor da Igreja: “Uma coisa é possuir facilidade de eloquência e esplendor de palavra, e outra é entrar nas veias e na medula das palavras celestes e contemplar com límpido olhar do coração os mistérios profundos e escondidos. Isto não pode ser dado, de maneira alguma, nem pela doutrina, nem pela erudição do mundo, mas somente pela pureza da mente através da erudição do Espírito Santo. E a presença de Jesus entre nós traz o seu Espírito.

            Por outro lado, lembramos que uma das primeiras páginas do Evangelho que lemos foi o Testamento de Jesus. O acontecimento de grande importância. Está ainda presente em nossas mentes o fato de que, na medida em que passávamos de uma palavra a outra, cada um parecia iluminar‑se; e era ‑ agora percebemos ‑ como se alguém nos dissesse: ‑Olha, na escola, vocês têm de aprender muitas coisas, mas o resumo é isto, isto, isto: consagra‑os na verdade... que todos sejam um... tereis a plenitude da alegria... sereis todos um, como eu e o Pai... etc. O Testamento se nos revelava como a síntese do Evangelho. E entendíamos esta realidade com uma compreensão que só podia ser fruto de uma graça especial. Tendo penetrado o "seu" Testamento ‑ como Deus quis e na medida em que quis ‑ depois nos foi mais fácil entender o resto do Evangelho.

            Amiúde, dávamos este exemplo: imaginem o Evangelho como uma planície, um terreno onde estão todas as palavras: lá no fim, encontra‑se o Testamento de Cristo, que sintetiza todas as outras palavras. 0 Senhor, ensinando‑nos a unidade à qual todas as verdades evangélicas se ligam, fez como que uma perfuração no terreno, para fazer‑nos penetrar e entender o resto do Evangelho por dentro, colhendo‑o na raiz de cada palavra, no seu sentido mais verdadeiro.

            Após viver durante cinco ou seis anos as palavras do Evangelho, percebemos claramente que elas se assemelhavam: havia algo de comum entre todas; cada uma ‑diria ‑ valia tanto quanto qualquer outra, porque os efeitos produzidos nas almas que as viviam eram idênticos, não importando qual fosse a palavra vivida. Por exemplo, para viver a palavra: “Quem vos ouve a mim ouve...”, não ficávamos esperando encontrar algum bispo ou superior para colocá‑la em prá­tica, mas a nossa vida toda, cada segundo da nossa existência, se transformava em obediência àquilo que os sacerdotes nos haviam ensinado através do catecismo, ou àquilo que havíamos aprendido de Deus e depois submetido à Igreja. De modo que, viver esta palavra equivalia a viver todas as outras, como as palavras que pedem para fazer a vontade de Deus, ou amar a Deus ou ao próximo. Por isso, tudo ia se tornando mais simples.

            A esta altura, poderia parecer supérfluo continuar este costume de focalizar em cada semana uma palavra; todavia ‑ e esta pode ser uma experiência de todos, se correspondermos à graça ‑ Deus trabalha as almas ‑ e às vezes manda tão sublimes dons de luz que se tem a impressão de receber uma compreensão mais profunda do Evangelho.

            Sob a influência destas graças, descobre‑se no Evangelho, por exemplo, que toda a vida de Jesus está orientada ao Pai. E então se lê o Evangelho com um novo interesse e se orienta a nossa vida também naquela direção.

            Podem ainda sobrevir graças de trevas escuras como o inferno, onde se duvida de tudo. E a maior dúvida é contra a lógica do Evangelho. Dizemos a nós mesmos - ou melhor, alguém com uma luz diabólica nos insinua: ‑ Se voltar a amar, você verá novamente, E então entrará outra vez no sistema, na vida sobrenatural, que por sua vez será um perigo para a sua liberdade; portanto: Detenha‑se. Não ame e você será você mesmo... O demônio faz de tudo para que não amemos. Mas, se resistirmos e fizermos exatamente o contrário daquilo que a tentação sugere, eis que se abrirá diante dos olhos da alma uma visão ainda mais profunda do Evangelho, Então descobri‑lo‑emos como o único Livro da Vida, entendendo que jamais conseguiremos compreender – “qual é a largura e o comprimento, a altura e a profundidade...” da palavra... Deste modo, o Evangelho permanece o livro eterno do nosso alimento espiritual.

Passemos a outro aspecto.

            A palavra de Deus! A palavra de Deus não é como as outras. Ela não só pode ser ouvida, como também tem o poder de atuar aquilo que ela exprime.

            E, já que a palavra é Cristo, gera Cristo na nossa alma e nas almas dos outros.

            Mesmo antes de viver a palavra, se somos cristãos, a graça habita em nós, a vida de Cristo habita em nós e com ela temos, sem dúvida, a luz de Deus, e o amor, mas um tanto fechados, como numa crisálida. Vivendo o Evangelho, o amor irradia a luz e a luz aumenta o amor. A crisálida começa a se mover até que dela sai a borboleta. A borboleta é o pequeno Cristo que começa a tomar lugar em nós e depois vai crescendo cada vez mais, cada vez mais... de tal modo que nos plenificamos sempre mais dele.

E isto que nos ensina o nosso Ideal. É isto o que pretende fazer a palavra de Deus em nós: formar o Cristo desde agora, de maneira que a preparação para a outra vida nada mais seja que o ponto culminante de uma vida vivida em função daqueles dias, daquela hora, da Vida verdadeira.

Que a palavra gera Cristo em nós, muitos o dizem: os Papas, os Santos, os Padres da Igreja.

Existe uma esplêndida descrição do papa Paulo VI sobre os efeitos da palavra e a maneira como deve ser acolhida. Ele chega até a sugerir um método, que é o mesmo do nosso Movimento. Diz o papa: “...Como Jesus se faz presente nas almas? Através do veículo que é a comunicação da palavra, passa o pensamento divino, passa o Verbo, o Filho de Deus feito Homem. Poder‑se‑ia dizer que o Senhor se encarna dentro de nós quando aceitamos que a sua palavra venha viver dentro de nós. Ouvindo as explicações do Evangelho, seja assíduo o de cada cristão o de apropriar‑se pelo menos de uma preciosa noção; e, voltando para casa, durante toda a semana, nutrir‑se de tão substancioso alimento espiritual: a palavra do Senhor...

            Portanto, antes de tudo, ouvir; depois, conservar. É necessário não apenas um ato passivo de aceitação, mas também uma reação ativa, um ato reflexo. Deve-se meditar.

            Existe um terceiro momento. A palavra deve se transformar em ação e guiar a vida. Ela deve ser aplicada ao nosso estilo, ao nosso modo de viver, de julgar e de falar... De tal maneira, a vida cristã se revela sobremodo atraente...”

E é esplêndido o conceito que Santo Inácio de Antioquia tem da palavra.  Ele sente que nós ‑ tendo saído da mente de Deus ‑ estamos destinados a voltar como Palavra de Deus. Escrevendo aos seus, para que não lhe impedissem o martírio, dizia: “Não quero que vocês procurem o que agrada ao homem, mas aquilo que agrada a Deus, por quem vocês são recebidos com prazer. E eu não terei mais uma ocasião como esta para alcançar a Deus... Se vocês se calarem (se me deixarem ir ao martírio) eu me tornarei palavra de Deus”.

            E São Tiago apóstolo afirma: “Por vontade própria Deus nos gerou pela Palavra da verdade, a fim de sermos como que primícias dentre as suas criaturas”.

Há também uma frase de Jesus no Evangelho que faz pensar. Quando os apóstolos se aproximam dele e lhe dizem que sua mãe e seus irmãos estão à sua espera, ele responde: “Minha mãe e meus irmãos são todos aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática”. Portanto, existe uma possibilidade admitida por Jesus de sermos, de algum modo, sua mãe. Sim, ele mesmo o disse.

Nós podemos gerar Cristo nas almas, como uma mãe gera, justamente através da palavra .

            Também São Gregório Magno afirma que podemos ser mãe de Jesus: .”Devemos saber que, quem é irmão e irmã de Jesus pela fé, toma‑se mãe por obra da palavra. Se alguém, com sua palavra, faz nascer o amor, do Senhor na alma de um próximo, ele como que gera o Senhor, porque o faz nascer no coração de quem ouve a sua palavra, e se toma mãe do Senhor”.

            Do mesmo modo, São Paulo, em virtude da palavra semeada no coração dos ateus, sente fortemente que se tomou pai deles: “Ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo, não teríeis muitos pais, pois fui eu quem pelo Evangelho vos gerou em Jesus Cristo”.

            Santo Agostinho vê as Igrejas geradas pela palavra de Deus: “Os próprios apóstolos, sobre os quais a Igreja foi fundada, seguindo o exemplo de Cristo pregaram a palavra da verdade e geraram as Igrejas”.

A Igreja, pois, é gerada precisamente mediante o anúncio da palavra. E, por sua vez, a Igreja é mãe e gera as almas através da palavra que doa e pelo batismo.

0 mesmo podemos afirmar com relação à nossa Obra. Ela foi gerada pela palavra que Jesus semeou em nosso coração, e é por sua vez mãe de muitas almas, porque as gera, depositando no coração dos homens a palavra, que não é um simples conceito, mas, espírito e vida

A palavra de Deus, portanto, gera Cristo nas pessoas, nas comunidades, nas Igrejas. Por isto, Clemente Alexandrino podia dizer: “....quem obedece ao Senhor e por meio dele segue a Escritura que nos foi dada, se transforma plenamente conforme a imagem do Mestre. Chega a viver como Deus encarnado. Mas, esta altura não podem atingir aqueles que não seguem a Deus que conduz. E ele conduz pelas Escrituras divinamente inspiradas”.

Colocar‑se em contato com a palavra de Deus é, portanto, colocar‑se em contato vital com Cristo, é observar a sua vida. Por isso, fazendo eco ao Cântico dos Cânticos: “Beija‑me com um beijo da sua boca”, podemos afirmar: toda vez em que vivo a palavra é como se desse um beijo na boca de Jesus, aquela boca que diz somente palavras de vida. Ele, que é Palavra, comunica‑se à nossa alma. E nós somos um com Ele! E nasce Cristo em nós.

E também esta a opinião de São Gregório Niceno: “Ora, a fonte é a boca do Esposo, de onde, emanando as palavras de vida eterna, enchem a boca de quem as atrai ... É preciso, pois, que aproxime a boca da água quem deseja conseguir a sua bebida na fonte. Ora, a fonte é o Senhor que disse: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba” e é  por isso que a alma quer aproximar a boca da boca de onde brota a vida, dizendo: “Beija-me com o beijo da tua boca”, e aquele que tem esta fonte para todos, e quer que todos sejam salvos, não deixa que nenhum daqueles que se torna purificação de qualquer mancha.

Depois de tudo o que foi dito sobre a palavra de vida, só nos resta tirar uma única conclusão: Quanto tempo de vida ainda teremos? No momento presente vivamos a palavra com aceleração crescente, a fim de que também nós sejamos, para o mundo e para a glória de Cristo, um Deus encarnado.


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