29 setembro 2019

A cruz

  “Tome a sua cruz…” (Mt 16,24).
      Estranhas e únicas essas palavras. Também essas, como as demais palavras de Jesus, têm algo daquela luz que o mundo não conhece. São tão luminosas que os olhos apagados dos homens, inclusive dos cristãos lânguidos, ficam ofuscados e, portanto, cegos.
      Nada talvez seja mais enigmático, mais difícil de entender, do que a cruz. Ela não penetra na cabeça nem no coração dos homens. Não entra porque não é compreendida, porque nos tornamos muitas vezes cristãos de nome, apenas batizados; talvez praticantes, mas imensamente distantes daquilo que Jesus queria que fôssemos.
      Ouve-se falar da cruz na Quaresma, beija-se a cruz na Sexta-Feira Santa, pendura-se a cruz nas salas de aula. Ela marca com seu sinal alguns atos nossos, mas não é compreendida. Talvez o erro esteja todo aqui: no mundo não se compreende o amor.
      Amor é a palavra mais bela, porém, a mais deformada, a mais deturpada. É a essência de Deus, é a vida dos filhos de Deus, é o alento do cristão, e tornou-se patrimônio, monopólio do mundo; está nos lábios daqueles que não teriam o direito de pronunciá-la.
      É verdade; no mundo, nem todo amor é assim. Ainda existe, por exemplo, o sentimento materno que enobrece o amor — porque misto de dor —; existe ainda o amor fraterno, o amor nupcial, o amor filial, bom, sadio: vestígio, talvez inconsciente, do Amor do Pai, Criador de tudo. Mas, o que não é compreendido é o amor por excelência, é entender que Deus, que nos fez, desceu até nós, homem entre os homens, viveu conosco, ficou conosco, e deixou-se pregar na cruz por nós, para nos salvar.
      É sublime demais, belo demais, divino demais, pouco humano demais, por demais sangrento, doloroso, agudo, para ser entendido.
      Talvez se entenda alguma coisa através do amor materno, pois amor de mãe não são só afagos, beijos; é sobretudo sacrifício.
      Assim também Jesus: o amor o levou à cruz, por muitos considerada loucura.
      Mas só aquela loucura salvou a humanidade, plasmou os santos.
      De fato, os santos são homens capazes de entender a cruz. Seguindo Jesus, o Homem-Deus, eles aceitaram a cruz de cada dia como a coisa mais preciosa da terra; brandiram-na, às vezes, como uma arma, tornando-se soldados de Deus; amaram-na por toda a vida, conheceram e experimentaram que a cruz é a chave, a única chave que abre um tesouro, o tesouro. Abre pouco a pouco as almas à comunhão com Deus. E assim, através do homem, Deus mostra-se de novo ao mundo, e repete — embora de modo infinitamente inferior, mas parecido — os atos de outrora, quando, homem entre os homens, bendizia a quem o maldizia, perdoava a quem o insultava, salvava, curava, pregava palavras de Céu, saciava famintos, fundava sobre o amor uma nova sociedade, mostrava o poder Daquele que o enviara. Em suma, a cruz é o instrumento necessário através do qual o divino penetra no humano e o homem participa da vida de Deus com maior plenitude, elevando-se do reino deste mundo ao Reino dos Céus.
      Mas, é preciso “tomar a própria cruz…”, despertar pela manhã aguardando-a, sabendo que só através dela nos chegam aqueles dons que o mundo não conhece, aquela paz, aquele gáudio, aquela noção de coisas celestes, pela maioria desconhecidas.
      A cruz… coisa bem comum. Tão fiel, que não falta ao encontro nem um só dia. Bastaria aceitá-la para tornarmo-nos santos. A cruz, símbolo do cristão, que o mundo rejeita, acreditando que, fugindo dela, foge da dor, e não sabe que ela escancara a alma, de quem a entende, para o Reino da Luz e do Amor. Aquele amor que o mundo tanto busca, mas não possui.

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