24 maio 2017

O "pano de fundo" da Paixão


Aos focolarinos/as da África
Nairóbi, 10 de maio de 1992 – resp. n.1

Você, Chiara, fala sobre Jesus abandonado e explica como é o mistério do
abandono que dá sentido a toda a vida de Jesus.
Estamos profundamente fascinadas por tudo o que você diz sobre este mistério e
sobre a sua centralidade. Poderia nos falar mais desta realidade?
[…] a meu ver, […] não se pode reduzir a ideia do abandono de Jesus somente a
um momento, quando Jesus gritou: "Meu Deus, meu Deus por que me abandonaste?",
porque - como lhes demonstrarei - o abandono dá sentido, é o pano de fundo de toda a
paixão de Jesus. Por que isso? Porque Jesus não foi decapitado, por exemplo, como
João Batista, nem sequer foi lapidado, como Santo Estêvão. Ele foi pregado na cruz. O
que simbolizava a cruz naquela época e que significado o Império Romano já dava antes
Os crucificados eram pessoas especiais. Eram criminosos políticos, dos quais a
sociedade queria se ver livre, ou seja, queriam expulsá-los da sociedade, excomungá-los
da sociedade. Também escravos rebeldes eram crucificados, mas um pouco sempre com
o mesmo sentido: "não fazem parte da nossa sociedade".
Depois, quando a ideia da crucifixão se infiltrou no judaísmo (o qual recebeu
esta […] herança do Império Romano), foi dado outro significado à pessoa que era
crucificada, mas um pouco semelhante ao anterior: a pessoa crucificada era eliminada
do povo judeu, eliminada da Aliança; era crucificada fora da cidade. Jesus foi
crucificado fora dos muros. Não pertencia mais a Deus: era um maldito, era um ímpio,
uma pessoa sem Deus. 
E, para evidenciar isso, o que ainda faziam os romanos? […] Faziam de modo
que o condenado à crucifixão colocasse às costas a parte transversal da cruz e a
carregasse caminhando pelo meio do povo, para que o povo o injuriasse e o ofendesse.
Ele percorria uma rua muito povoada e era crucificado pelas ruas ou num monte, para
que ficasse à vista de todos. 
Jesus passou por tudo isso, porque foi crucificado. Portanto, não foi só o grito:
"Meu Deus, meu Deus...", esse foi o ápice, mas foi um crescente de abandonos. 
Em primeiro lugar, ser crucificado fora dos muros. Mas já o fato de ter sido
abandonado pelos discípulos o fez experimentar a solidão. Primeiro eles dormiram no
horto e, em seguida, o abandonaram. E mais, Jesus foi abandonado também pela
multidão que antes o tinha aclamado rei, etc., etc. Depois o coro da multidão se uniu
àquele de todas as autoridades e também às palavras do mau ladrão. Foi abandonado
inclusive pelo cosmo, digamos, pela natureza, com as trevas que sobrevieram. Os
momentos de abandono foram crescendo. Ele foi crucificado nu, que é símbolo
justamente da solidão. E, por fim, na cruz sentiu também o abandono direto do Pai. 
Eis por que o abandono não é somente um grito, mas é toda a atmosfera da
paixão de Jesus, é o que dá sentido e que permite entender a paixão de Jesus. […]
Naturalmente é preciso não esquecer que toda a história de Jesus, inclusive a sua
morte e ressurreição, é toda uma história de amor que ele tinha com o Pai. Havia um fio
de ouro que sempre manteve Jesus ligado ao Pai. Com efeito, a realidade de Jesus, a
pessoa de Jesus consiste só nisso: ser o acolhimento do Pai, obediência ao Pai; era não
tanto ser ele mesmo, mas viver o "nada", como nós dizemos, para acolher o Pai. Ele não
fez outra coisa senão acolher o Pai, ser receptividade do Pai. E foi o que Jesus fez
sempre, até nos momentos dolorosos, sempre, sempre, sempre. E mesmo quando gritou
o abandono, ele por amor ao Pai, por amor a Deus, perdeu Deus.
Naturalmente, porque era receptividade do Pai, porque era acolhimento do Pai, e
o Pai quis que ele morresse e amasse todos os homens, que morresse por eles, por isso
mesmo Jesus acolheu em si também todos os seres humanos. Por isso a sua vida, na
relação com o Pai e na relação com os irmãos, está totalmente relacionada com o
momento do abandono. Não podemos esquecer isso: que por detrás de todos esses
momentos de solidão manteve-se este fio, este fio do vínculo entre Jesus e o Pai.
Agora seria natural também chegar a uma conclusão. Nós falamos muitas vezes
do nada, não foi? Que queremos viver o nada, ser o nada. Aí está, o sistema para isso é
viver como Jesus, sermos todas nós também... Não devemos ser Chiara, Genoveva,
Bernadete, Eli. Não devemos ser nós mesmas, porém… porém, sendo nós mesmas,
devemos ser o nada de nós, só a vontade de Deus, tudo aquilo que Deus quer e basta. E
ser só amor para com os irmãos. Portanto, amor por Deus na oração, porque é o
momento de estarmos realmente em relação com ele. Amor por Deus fazendo todas as
suas vontades (tal como agora é escutar e para mim é falar) e amor pelos irmãos: sermos
todos… Por isso quando nós dizemos: viver o outro, ser o outro, viver no irmão, etc.,
essa é a linha, a linha para viver como Jesus viveu, se bem que ele tenha sofrido todas
estas dores do abandono.



Nenhum comentário: