28 fevereiro 2017

Segunda escolha de Jesus Abandonado

            No brusco despertar de nos encontrarmos – por assim dizer – outra vez na terra, só uma pessoa nos deu forças para continuar vivendo: Jesus Abandonado, presente no mundo que devíamos amar, esse mundo que assim é, justamente porque não é Céu.
            Numa segunda escolha, mais consciente, mais lúcida, d’Aquele que nos chamara para segui-lo, brotou de minha alma a notória decisão:

            Tenho um só Esposo na terra:  Jesus  Abandonado.  Não tenho outro Deus
além  d’Ele.  N’Ele está todo o paraíso com a Trindade e toda a terra com a
humanidade.
Por isso, o seu é meu e nada mais.
Sua é a Dor universal e, portanto, minha.
Irei pelo mundo à sua procura em cada instante da minha vida.
O que me faz sofrer é meu.
Minha, a dor que me perpassa no presente. Minha, a dor de quem está ao
Meu lado  (ela é o meu Jesus).  Meu,  tudo  aquilo  que  não é paz, gáudio,
belo, amável, sereno...  Numa palavra: aquilo que não é paraíso.   Pois eu
também tenho o meu paraíso,  mas ele está no coração do meu Esposo.
Outros paraísos não conheço. Assim será pelos anos que me restam:
sedenta de dores, de angustias, de desesperos, de melancolias, de
desapegos, de exílio, de abandonos, de dilacerações, de...  tudo aquilo que
é Ele, e Ele, é o Pecado, o Inferno.
Assim, dessecarei a água da tribulação em muitos corações próximos e  –
pela comunhão com meu Esposo onipotente – distantes.
Passarei como fogo que devora tudo o que há de ruir e deixar em pé só a
Verdade.
Mas é preciso ser como Ele, ser Ele no momento presente da vida.
Escrevi que “Ele é o Pecado, o Inferno”[1].
Pavel Evdokimov diz: “O Espírito Santo não une mais o Filho ao Pai, e o Filho constata o rompimento, o abandono; é a solidão no âmago da Trindade, o sofrimento de Deus. O inferno de Deus... “ (Evdokimov, 1969, p. 109).
Para Hans Urs von Balthasar, Jesus Abandonado é e não é o inferno:

A treva do estado pecaminoso é certamente experimentada por Jesus de
um modo que não pode ser idêntico à que os pecadores (que odeiam Deus)
 teriam de experimentar [...], no entanto, é mais profundo e mais obscura do
que esta, porque se passa internamente na profundidade da relação das
hipóstases divinas, inimaginável a toda criatura.
Portanto, pode-se igualmente bem afirmar que o abandono de Deus em
Jesus é o contrario do Inferno, e que é exatamente o inferno (cf. Lutero,
Calvino), até mesmo a sua extrema intensidade. (Balthasar, 1986, p.313)





[1]  O teólogo ortodoxo Olivier Clément também escreve: “Através de suas humilhação, de sua Paixão, de sua morte de maldito, o Cristo deixa entrar em si todo o inferno, toda a morte da condição decaída, até a acusação decaída, até a acusação terrível do ateísmo: ¢Deus meu, Deus meu porque me abandonaste?¢” (Clément, 1990, p. 147). 

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